A Internacional

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domingo, agosto 22, 2010

A fórmula secreta dos Tomé Feteira


Há quase 200 anos que a família Tomé Feteira domina Vieira de Leiria, o que se vê nos nomes das ruas e das instituições. Foi aqui que Lúcio Tomé Feteira iniciou a carreira empresarial que o levaria a ser um dos homens mais ricos do mundo. Agora que a herança de Lúcio se tornou num tema nacional - devido ao homicídio, no Rio de Janeiro, de Rosalina Ribeiro, sua secretária e amante - a vila de Vieira espera pacientemente pelo quinhão a que tem direito. Mas como iniciaram os Tomé Feteira a sua poderosa dinastia? Qual foi o seu segredo? 
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Por Paulo Moura

Fernando Manuel Moreira Fonte, 73 anos, está a arranjar o jardim da casa do filho, que fica mesmo em frente aos pavilhões abandonados da Empresa de Limas União Tomé Feteira Lda. "Não consigo olhar para ali sem começar a emocionar-me", diz ele, já com lágrimas nos olhos.

É uma série de pavilhões de tom amarelado e ar muito decadente, com os vidros partidos nas pequenas janelas e vegetação bravia a toda a volta. "Entrar ali? Não era capaz. Ver aquilo como um cemitério abandonado? Deve ser horroroso." Fernando nunca mais foi lá dentro, e foram poucas as vezes que passou junto ao portão, desde que deixou de trabalhar na fábrica de limas, há 17 anos.

Entrou aos 13, para que não andasse na rua. Tinha terminado a escola e passava os dias a brincar no pinhal, com os outros miúdos, o que era considerado perigoso. Quem decidiu foi o pai, que trabalhou na fábrica de limas também desde a adolescência. Fernando foi para uma secção chamada dos "marteletes", fazer limas triangulares, de três quinas, para afiar dentes de serrote. "Martelávamos com cinzéis de aço atómico", explica Fernando. "Depois era de aço rápido, tão duro como diamante." Era das tarefas mais duras que havia na fábrica. "Ganhava 7 escudos ao dia. As limas eram de três tipos: clarinho, as melhores, mais desejadas; de coroa e de vinte, que eram as mais fracas."

As "clarinho" eram inicialmente vendidas sob uma das marcas "Joaquim Tomé Feteira", "Coroa" ou "Cabeça de boi", o que desvendava em parte o segredo da família Tomé Feteira, para quem soubesse entender. Mais tarde, Fernando chegou a trabalhar na secção onde esse segredo tinha mais implicações: a têmpera. "Havia umas bolas enormes, de ferro, que rolavam sobre as pedras de um cadinho, 48 horas seguidas." Tratava-se de moer as componentes desse composto miraculoso e secreto que daria às limas Tomé Feteira a sua rijeza incorruptível. E também todo o seu valor.

A fórmula secreta desta têmpera manteve-se na posse da família durante quase dois séculos, e foi isso que garantiu aos Tomé Feteira o domínio sobre a indústria das limas, o seu crescimento e a eliminação de todos os concorrentes menores, e, em consequência, o domínio social, cultural e político na região de Vieira de Leiria. A Forja dos Tomés foi o berço deste império, que veria evoluções e ramificações importantes, como a das empresas internacionais de Lúcio Tomé Feteira.

E, no entanto, não foi um Tomé Feteira que inventou a fórmula. Ao que apuraram alguns historiadores interessados no caso, terá sido um francês que ficou por cá depois de ter participado na última invasão napoleónica, comandada por André Massena, em 1810. Terá sido este sobrevivente das Linhas de Torres a ensinar a um português de Vieira de Leiria, António Luiz, a fórmula da têmpera.

Na época, o Pinhal de Leiria era o centro de várias actividades ligadas à extracção de madeira. Sempre fora, desde a construção naval no tempo dos Descobrimentos, mas agora, depois das invasões francesas, a madeira era ainda mais solicitada, para as tercenas (estaleiros) do reino.

A indústria da madeira requer machados, serrotes e outros instrumentos de ferro, bem como limas para os afiar. António Luiz, detentor da fórmula secreta, achou por isso que seria uma boa ideia abrir uma oficina de machados, martelos, arruelas e limas. O local era perfeito, não só porque havia grande procura desses instrumentos, mas também porque não faltava madeira para alimentar os fornos das forjas.

Antes de morrer, António Luiz passou a sua empresa para os três filhos e quatro aprendizes da oficina. Um destes aprendizes chamava-se Joaquim Tomé e veio a abrir mais tarde a sua própria oficina, onde empregou todos os filhos.

Anos depois, multiplicam-se na região as oficinas de machados e limas. Consultando os registos da época, vê-se que a maior parte dos proprietários dessas oficinas têm os apelidos Tomé, Feteira, Tomé Feteira ou Luiz Vieira. São os descendentes de António Luiz e de Joaquim Tomé, ou seja, as famílias possuidoras da fórmula.

Joaquim Tomé Feteira, filho de Joaquim Tomé e Angélica Feteira, trabalhou na oficina do pai e fundou depois a sua própria, provavelmente na década de 1860: a Forja dos Tomés.

Os Luiz Vieira, bem como a maioria das outras oficinas, acabaram por ser absorvidos pela Forja dos Tomés. Em 1919, esta era transformada na Empresa de Limas União Tomé Feteira, uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Os proprietários eram os quatro filhos mais velhos de Joaquim Tomé Feteira: Raul, Francisco, Albano e João. Em 1931, Raul cede a sua quota ao irmão mais novo, Lúcio Tomé Feteira. Mais tarde, é a vez de Francisco ceder a sua a Albano e João. Lúcio acabará também por vender tudo a João, para se dedicar a outros negócios no estrangeiro - ou seja, nos seus anos áureos, quando a indústria se desenvolveu, com a introdução do aço, o proteccionismo estatal e a chegada das duas guerras mundiais, onde as limas eram essenciais na produção de armamento, a fábrica está nas mãos de Albano e João.

Fernando Fonte, que entrou aos 13 anos para a fábrica, em 1950, lembra-se bem dos dois irmãos. "O João é que mandava. Estava sempre lá, interessava-se mesmo pelas limas. O Albano interessava-se por outra coisa. Só lá ia para inspeccionar os trabalhadores. Ver se estava tudo no seu posto. Quando ele chegava, ficávamos logo aflitos. Ele aparecia de surpresa, mas nós sabíamos desde o primeiro momento que ele entrara na fábrica. Pelo perfume que usava. Era tão forte que ainda ele vinha ali no pátio, já todos estávamos direitinhos, para não sermos apanhados em falta."

Segundo as monografias escritas sobre a empresa, Albano era o director comercial, e João o "mago do laboratório". O "depositário do tesouro paterno de conhecimentos tecnológicos", ou seja, a fórmula.

Hoje, que os irmãos Tomé Feteira já venderam a empresa a uma sociedade austríaca, pode-se revelar o segredo. O composto, chamado "a cornada", tinha três ingredientes: pó de carvão, cinza e pó de chifres de bovino. Este último era obtido queimando os chifres e moendo-os depois, num cadinho. Continha carbono, que impedia que os dentes da lima se partissem ao entrar em contacto com a água do tanque da têmpera. Embebida na "cornada", a lima ia ao forno, com uma temperatura de 740 graus, num cadinho com chumbo líquido, sal-gema, soda e pó de chifre. Era esta a têmpera das limas Tomé Feteira, o segredo que garantiria o poder de uma família, e o seu domínio sobre uma população inteira, para o bem e para o mal.

PIDE na fábrica

Albano, o perfumado, tinha duas especialidades, só remotamente relacionadas com o fabrico de limas: as mulheres e a repressão aos trabalhadores. "Na fábrica, a única coisa que fazia era vigiar os operários, perseguir os contestatários e os comunistas", recorda outro trabalhador da empresa, que prefere manter-se anónimo.

Albano era membro da Legião Portuguesa e tinha muitos amigos no regime. "Ele gostava de se afirmar como benemérito, mas nós sabíamos que denunciava os trabalhadores à PIDE." Em certas alturas, por influência das contestações dos operários da Marinha Grande, havia surtos de prisões na fábrica, noutras era a polícia que vinha para esmagar qualquer início de insubordinação.

Por outro lado, Albano era um romântico. Era às mulheres que dedicava a maior parte do seu tempo. Principalmente as dos outros. Montou casa a algumas solteiras e a sua predilecção eram as viúvas. "Mas do que gostava mesmo era das casadas", conta o operário da fábrica. "Destruiu muitas famílias. Outras não faziam nada, por medo."

Neste capítulo, Lúcio não era melhor do que ele. Mas teve a inteligência de ir para o estrangeiro. "Não quis ficar cá, para não interferir nos negócios dos irmãos", explica Joaquim Vidal Tomé, 57 anos, presidente da Junta de Vieira de Leiria. "Isto era demasiado pequeno para o que ele queria."

Lúcio, o mais novo dos irmãos, foi preparado para voos mais altos pelo pai, o velho Joaquim Tomé Feteira. Obrigava-o a andar descalço e a tomar banho de água fria no rio e no mar, para ficar mais rijo, à semelhança da têmpera a que submetia as limas. Ensinou-o a ler muito cedo e mandou-o para o liceu. "Dos irmãos, foi o único que estudou", diz o presidente da junta. "Foi por isso que teve de ir para fora."

Regressou e chegou a ser sócio dos irmãos, mas aos 21 anos já tinha viajado para Angola, onde trabalhou como funcionário de Finanças, e depois para o Congo Belga, onde se envolveu em várias empresas. Casou-se com Maria Adelaide, filha de um industrial do vidro, e, após ter vendido a participação na fábrica de limas, fundou, com a ajuda do sogro, a Covina, uma fábrica de vidro. A partir daí, diversificou os negócios, por vários ramos e países, com êxito fulgurante. Nos finais dos anos 50 foi considerado um dos homens mais ricos do mundo.

Em Vieira de Leiria, a população vivia na miséria. Os Tomé Feteira não só eram donos da fábrica que empregava grande parte da população (no tempo de Fernando Fonte havia lá mais de 1900 trabalhadores), mas também de muitas das terras e casas da povoação.

Quem podia emigrava. Em 1962, Fernando foi desafiado por um amigo para ir a salto para França. Mas era preciso pagar 15 contos, e ele não os tinha. "Mas eu casei-me agora. Não tenho dinheiro", disse Fernando ao amigo. Andara a juntar tostões dos prémios. Para incentivar a produção, os irmãos Feteira pagavam 4 tostões por cada dúzia de limas que o operário produzisse a mais. Com um grande esforço, Fernando conseguiu juntar 30 escudos por semana, que gastou na aquisição da mobília, e na renda da casa, propriedade dos patrões.

Mais tarde tentou uma autorização para a emigração legal, mas foi vetada. Soube depois que a PIDE pedira informações sobre ele a Albano Feteira, que não o deixou partir. "Por eu ser um bom operário", explica.

Com o 25 de Abril, os operários revoltaram-se. Uma comissão de trabalhadores sequestrou Albano dentro da fábrica e assumiu o controlo da empresa. Na confusão dos meses seguintes, os Tomé Feteira tentaram desembaraçar-se de muitas das propriedades. Fernando Fonte comprou-lhes a casa onde hoje vive pela bagatela de 220 contos.

Dependência e revolta

"Lúcio Feteira sempre deu muito a esta terra", diz o presidente da junta. "E tinha um grande sentido de família. Por isso todas as obras que ele criou ou financiou têm, a seu pedido, nomes de pessoas da família dele." É o caso do infantário, dos bombeiros, da casa paroquial, da Biblioteca de Instrução Popular. E, segundo o testamento, 80 por cento de um sexto do total da herança deverão ser atribuídos a uma fundação, com sede na Quinta da Carvalheira (uma propriedade de Lúcio ao lado da fábrica de limas), gerida pela junta de freguesia, que promoverá obras de carácter social e cultural em Vieira de Leiria. Não se sabe qual o montante a receber, porque não está calculado o valor total da fortuna. Mas pensa-se que a junta de freguesia (de que Lúcio chegou a ser presidente) possa receber mais de 100 milhões de euros para gerir em prol da população.

O processo está congelado devido ao litígio entre a filha de Lúcio, Olímpia, e a secretária-amante assassinada, em Dezembro de 2009, no Rio de Janeiro, Rosalina Ribeiro - um crime que está a ser investigado pela polícia brasileira e que, por estes dias, transformou a herança de Lúcio Tomé num tema nacional.

"O sr. Lúcio ficou muito desagradado com a atitude da população de Vieira para com a sua família depois do 25 de Abril", explica Joaquim Vidal Tomé. Mas reconciliou-se quando, numa visita à terra, a biblioteca (de que ele fora um dos fundadores) organizou uma festa em sua honra. O rancho das Peixeiras de Vieira dançou à sua volta e o magnata chorou de emoção. Passou a dar uma contribuição de 500 euros mensais à biblioteca. Quando morreu, há dez anos, a Biblioteca de Instrução Popular voltou a entrar em dificuldades, e agora anseia por que a questão judicial seja resolvida, para receber parte dos milhões de Lúcio. "Mas esta história do assassínio ainda vai atrasar mais as coisas", pensa o presidente da junta.

Dependência e revolta. Sempre foi assim a relação de Vieira de Leiria com a família Tomé Feteira. "Eu sei que fomos escravizados", diz Fernando Fonte. "Mas não consigo olhar para estes pavilhões sem me emocionar. Aquilo era uma coisa formidável, tudo a funcionar. Foi a minha vida."
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Com a chegada do século XX, a Vieira vai-se tornar protagonista de uma das mais singulares migrações internas que Portugal conheceu — a dos "avieiros". O agravamento das condições de vida dos pescadores, aos quais a vila nada mais tinha para oferecer para além de um inverno rigoroso e muita fome, criou um grande fluxo migratório em direcção ao Tejo. Grandes comunidades de avieiros se foram estabelecendo junto das vilas ribeirinhas, encaminhando-se depois, para o tráfego comercial fluvial e terrestre. As maiores movimentações terão ocorrido entre 1919 e 1939. Durante décadas esta gente dividiu a sua vida entre o verão em Vieira e o inverno no Tejo, entre a arte xávega da sardinha e a arte varina do sável. Mas chegou o dia em que deixaram de regressar durante o Verão. E para sempre ficaram ligados à história do Tejo, os homens de Vieira, os avieiros.
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Wikipedia
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Avieiros - Wikipédia, a enciclopédia livre

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no D'Ali e D'Aqui

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Avieiros - Alves Redol

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