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Flavio Andrade Goulart:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... Esta é a primeira estrofe de um primoroso soneto da Lírica de Camões, no qual o poeta lamenta a passagem do tempo e as inúmeras mudanças que esta provoca na alma, nos sentimentos, na natureza, na vida enfim. O último verso, digno de Heráclito de Éfeso, o criador da Dialética, ressalta a mudança até na maneira do mudar das coisas (outra mudança faz de mór espanto, que não se muda já como soia...). A criação do poeta não deixa de ser bastante adequada, também, para despertar algumas reflexões sobre o must da temporada: a chamada gripe suína. Com efeito, mudaram-se os tempos e estas mudanças tiveram imensas repercussões nas formas de lidar com os problemas de saúde pública, seja do ponto de vista das técnicas, das relações políticas, das maneiras de divulgar e fazer repercutir o fenômeno, das diversas vontades implicadas com o mesmo.
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Gripe suína, influenza A, H1N1 ou qualquer outro nome que se queira dar. Esta é mais uma história de um mundo que muda a cada dia – não necessariamente para melhor, diga-se de passagem – e sobre o qual nós carecemos de instrumentos de compreensão, menos ainda de mudança das coisas a nosso favor.
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No princípio eram os porcos... Mais precisamente na aldeia mexicana de La Glória, onde, a 10 quilômetros colina acima, as Granjas Carroll, que atendem também pela alcunha de Smithfield Foods, criam uma vasta porcada. Essa agroindústria tem sede na Virgínia e na Carolina do Norte, no vizinho país, de onde foram expulsas, aliás, por fazer muita porcaria no meio ambiente. No interior do México não é diferente: há anos acumulam-se denúncias de contaminação do lençol freático, do surgimento de febres intestinais na população da região, entre outros problemas. Pela regras do Nafta, entretanto, do qual o México é um parceiro obsequioso, permitiu-se a realocação da Carroll, desde 1994, em La Glória, distrito de Peiote, à distância conveniente da fronteira com os EUA. Seria trágico, se não fosse real e se não fosse considerado pelo governo mexicano um ganho econômico para a nação.
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Pois bem, no coração de La Glória, uma povoação paupérrima entre tantas outras no México, o primeiro a adoecer foi um menino de quatro anos, que conseguiu sobreviver, todavia. Seu organismo pode ter servido de base de lançamento para uma combinação genética que daria up-grade ao vírus. Mas outros acham que, na verdade, tudo isso surgiu de um erro de manipulação, em laboratório, em outro país, distante dali, tanto em termos geográficos como econômicos e culturais. Mas aí, os pobres mexicanos e também os porquinhos Carroll -- nada a ver com histórias infantis -- já haviam levado a culpa.
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Isso se deu em março último, mas de lá para cá tantas coisas aconteceram e continuam a acontecer que nós, os mortais comuns (99,99% da humanidade), andamos completamente desnorteados.
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Em primeiro lugar é uma doença que se chama suína, mas não vem dos porcos; é mexicana, mas que talvez não tenha se iniciado ou se concentrado no país de Frida Kahlo; parece a gripe comum, mas tem comportamento próprio -- e estranho. Seus números figuram surreais, por variarem ao sabor da coloração das fontes, das pressões do interesses e sabe-se lá do quê mais.
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Os produtores de carne suína, entre eles os do Brasil, fizeram sua parte para aumentar a confusão, ao exigir a mudança do nome da doença; o México, tradicional destino turístico e que tem nos porcos uma forte indústria, chiou com razão; laboratórios farmacêuticos internacionais, até ontem ameaçados pela outra crise, a do capitalismo, ofereceram pressurosamente suas balas mágicas, farmacológicas e imunológicas contra a influenza A, fazendo, até mesmo, quem sabe, certa “torcida” para que o estado de pandemia fosse declarado, de vez, pela Organização Mundial de Saúde – OMS.
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A Organização Mundial de Saúde, por sua vez, custou a ver que a ficha lhe escapara. E tome divulgação de informações pouco confiáveis. No meio do caminho aceitou uma das mudanças de nome da doença para atender aos interesses do porco-negócio. Para muitos a grande entidade mundial da saúde ainda está meio perdida, eis que faz e incentiva uma despropositada badalação em relação a uma doença que nem atinge ou mata mais pessoas do que a tradicional gripe, tão vulgar no cotidiano das pessoas. Enquanto isso, doenças de verdade, como a malária, a tuberculose, a dengue, a leishmaniose ceifam vidas em todo o mundo, em proporções incomparavelmente maiores do que a tal influenza A. Para não falar nos acidentes, nas demais violências, nas doenças derivadas do hábito de fumar, do câncer e até mesmo da fome -- a velha, velhíssima fome! E não consta que a OMS faça tal escarcéu diante delas.
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A paranóia triunfa e conhece tempos de glória
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A paranóia, esta sim, triunfa e conhece tempos de glória, enquanto La Glória original já ficou esquecida. A China, imaginando certamente que o México e o resto do mundo já fazem parte da Grande China (um dia talvez o façam de fato, mas que Beijing tenha calma e aguarde...), decreta quarentena, detêm cidadãos mexicanos, fecha hotéis, trata com antivirais todos os passageiros de determinados vôos internacionais e mais faria se não fora, para tanta paranóia, tão curta a gripe... Ou seja, as autoridades chinesas tentaram tratar o mundo exterior como fazem com seu próprio povo. Aliás, a portentosa China da economia, em matéria de direitos humanos e realizações de saúde pública, bem poucas lições pode oferecer aos outros países, mesmo bem mais pobres e de menor PIB do que ela...
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Nos últimos dias, tornou-se possível o acesso, pela internet, de um mapa global construído dentro da tecnologia do programa google maps, mostrando a distribuição dos casos de H1N1 em todo o mundo, permitindo observar também seu detalhamento em termos de uma linha de tempo. A imagem disponível, rica em cores e detalhes, salta aos olhos: o fenômeno está localizado nitidamente acima da linha do Equador, mais precisamente nos Estados Unidos, no Canadá e na União Européia. Conclusão? Não estaria aí uma das causas, talvez a principal delas, para a desproporcionalidade da reação das OMS e das próprias nações ricas diante do fenômeno?
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Imagino, também, que a humilhação que os mexicanos sentiram deve estar sendo finalmente revertida. Se a doença começou entre eles (o que é controverso), o certo é que ela hoje está muito mais bem controlada no México do que nos Estados Unidos, país que, como se sabe, tem um sistema de saúde calcado no liberalismo e no Mercado, com reduzida capacidade de intervenção diante de problemas de interesse coletivo, como as epidemias em geral. Afinal, ali imperam a livre empresa e o livre arbítrio, além do the pursuit of happiness, para o bem e para o mal.
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O papel da imprensa também oferece grandes oportunidades para reflexões. Ela aparentemente fez o que devia (e que muitas vezes ficaria opaco, se deixado apenas a cargo das autoridades). Mas foi uma cobertura pautada pelas duas grandes vacas sagradas da comunicação contemporânea: a espetacularização e o mercado. Da primeira, já há quem advirta que esta gripe é mais midiática do que propriamente virótica -- e não é difícil acreditar nisso – mesmo quem não crê em bruxarias desconfia que las hay... Do mercado, que hoje é tratado pela mídia como uma entidade dotada de inteligência, reações e até sentimentos, nem se fala. Ler um grande jornal ou ouvir TV nesses tempos de cólera, digo de gripe, nos dá às vezes a sensação que se trata de matéria produzida diretamente pelas assessorias de comunicação da Glaxo ou da Roche, quando não dos gabinetes da União Européia.
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Uma coisa é certa: o fim da gripe poderá acontecer quando aparecer algum fato novo de importância mundial, quem sabe alguma derrubada de Dow Jones em Nova Iorque ou em Shangai. Ou seja, vai terminar quando deixar de ser notícia, ou vai continuar, mesmo não sendo mais notícia -- isso pouco importará. Na gripe como na guerra a primeira vítima não estava onde parecia estar; a primeira a tombar foi, como sempre, a Verdade. Conclusão: é preciso discutir, sim, o papel da mídia em casos como este, longe da certeza paranóica que costuma cercar a expressão liberdade de expressão. Essa liberdade não pode ser antagônica à necessidade de divulgar ao público não a verdade mais conveniente, mas as várias verdades que cada lado envolvido na história possui. Nunca a tradicional brincadeira dos economistas de que um espirro nas bolsas do primeiro mundo provoca uma pneumonia nos países mais pobres esteve tão perto de se transformar em verdade, embora com sinal trocado.
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O Deus Mercado e a crise do Capitalismo
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Falar no Deus Mercado nos remete a outra crise recente, a do Capitalismo, ente tão condenado como triunfante. Na gripe e na crise do capital há mais coisas em comum do que as enganosas aparências parecem demonstrar. Contradição e confronto de interesses mais do que necessidades ou demandas legítimas é uma delas. O papel da mídia em busca do espetáculo permanente é outra. E ainda: a celebração sem crítica do culto às novas divindades contemporâneas; a eclosão (e também a interrupção) de notícias não necessariamente provenientes de evidências da realidade; o isolamento e a alienação do cidadão comum das informações, para não falar das decisões.
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É a globalização, diriam os mais afoitos. Mas isso não seria tudo. A globalização microbiana do mundo começou, de fato, no século XVI -- nenhuma novidade na epidemia atual, portanto. No mais, as finanças, a informação simultânea, as migrações de pessoas, o crime organizado, os conhecimentos científicos, a tecnologia, os sistemas de poder, a produção e o trabalho humano, tudo isso hoje é globalizado, como lembra o pensador italiano Giovanni Berlinguer. Na prática, a globalização da economia equivale à acumulação de capital e de poder em mãos restritas e ao predomínio do jogo financeiro sobre qualquer outro interesse. Mas como lembra o mesmo Berlinguer, ela é irrefreável, sobretudo por corresponder a muitas exigências dos seres humanos.
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A verdadeira questão parece ser bem outra: de qual a globalização se fala, para que fins, em que rumo? Os dois acontecimentos planetários recentes aqui tratados não parecem augurar respostas que conduzam a expectativas otimistas para a humanidade.
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Que mundo é esse, afinal, que parece andar de ré? Que ele não nos serve, nem na economia e muito menos na saúde pública, parece não haver mais dúvidas. Os escombros estão por toda parte, mas no interior deles os germes da exploração e da irracionalidade conseguem, milagrosamente, se multiplicar. É um mundo caduco, mas nele ainda não conseguimos esgueirar o surgimento de algo verdadeiramente novo. Tempos difíceis, meus irmãos...
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Em momentos assim, os inconformados habitantes de tal mundo ao revés querem ser agentes de mudanças sobre o mesmo. Hannah Arendt falou sobre isso como o exercício da vida ativa, ou seja, do que estamos fazendo, de fato, para mudar o que nega e destrói as condições de existência do ser humano. Entre trabalho, labor e ação, somente mediante a ação (vida ativa) humana é que as coisas de fato acontecem, pois este é o único componente da tríade que se realiza diretamente entre os homens, sem outras mediações. Seu atributo maior é o do exercício da liberdade e da instauração de novas formas de pensar, de fazer política, de participar da vida comunitária, de se rebelar contra as opressões novas e antigas.
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Resumindo e encerrando: mudaram-se os tempos e as vontades; mudou-se até a maneira de mudar. Nós, cidadãos, não podemos ficar na situação colocada pelo antigo adágio chinês, que fala de alguém que ao lhe ser mostrada a lua só enxerga o dedo que aponta o satélite. Essa história de gripe suína (quem sabe também da crise que tem ceifado o emprego de milhões de pessoas) tem cara se ser apenas o dedo – a lua está mais adiante...
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Flávio Goulart, professor aposentado da UnB, é consultor em saúde.
Artigo publicado originalmente na seção Convidado do Blog do Dirceu
in Vermelho - 25 DE MAIO DE 2009 - 19h36
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Número de países atingidos pela gripe suína sobe para 73
A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou nesta segunda-feira (8) que subiu de 69 para 73 o número de países atingidos pela influenza A (H1N1) – gripe suína. O boletim indica que 25.288 casos foram confirmados e que 139 pessoas morreram vítimas da doença em todo o mundo.
Os Estados Unidos registram quase a metade dos casos, 11.054, além de 27 mortes. O México, com 5.717 infectados, é o país com o maior número de mortes provocadas pela doença: 106.
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O Canadá registra 2.115 casos e três óbitos. No Chile, o total de ocorrências chega a 411 e houve uma morte. Na República Dominicana, há 44 casos e uma pessoas morreu. A Costa Rica permanece com 68 casos e um óbito.
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No Brasil, o Ministério da Saúde confirmou ontem (7) mais uma ocorrência de gripe suína, no Rio de Janeiro. Ao todo, 36 pessoas foram infectadas em todo o país. Há ainda 45 casos considerados suspeitos.
Agência Brasil
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