Flávio Aguiar:
A mídia do Ocidente prega continuamente sobre o atraso da "república islâmica" do Irã, em vários aspectos políticos e comportamentais (no que muitas vezes têm razão). Mas quase sempre omite o papel que os países líderes do Ocidente tiveram e têm nessa consolidação. É nessa moldura – em que o poder de fato está, não nas mãos do presidente da república, mas do corpo e do líder dos aiatolás – que aparece o espaço para um político de ambições próprias como Mohammad Ahmadinejad. A análise é de Flávio Aguiar, para a agência Carta Maior.
Agora você vai ouvir aquilo que merece,
As coisas ficam muito boas quando a gente esquece...
.Lupicínio Rodrigues
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Eu me lembro vagamente de um artigo nas Seleções do Reader’s Digest, que meu pai colecionava, sobre a Pérsia dos anos cinqüenta do século passado.
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Tinha uma ilustração com um guarda correndo e um cara ao fundo, com uma maleta, ou algo assim, na mão.
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E aí vinha a história: o guarda, fazendo uma ronda, achara que o cara com a maleta era um ladrão e correra atrás dele. Nem sei se o cara foi preso ou se deixou cair a maleta e fugiu. Mas dentro da maleta a polícia de Teerã (pois estávamos na então Pérsia, hoje Irã) descobriu uma derrama de planos para fazer o comunismo tomar o país de assalto.
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E esse golpe terrível contra a Pérsia e a humanidade foi evitado graças àquele guarda que correu atrás de um suposto ladrão de dinheiro ou de bugigangas, mas que na verdade era um ladrão de países e de almas. Porque além de criancinhas os comunistas comiam almas.
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Tempos depois, eu vim a saber que o guarda e a maleta podiam até ter existido, mas era tudo mentira. Mas era uma mentira de verdade: aquilo fizera parte da Operação Ájax, uma operação montada pela CIA e pelo serviço secreto britânico MI6 (oficialmente, SIS, Secret Intelligent Service) para derrubar o governo nacionalista do primeiro ministro Mohammad Mossadegh, que nacionalizara o petróleo.
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Isso foi considerado uma afronta e um perigo para os interesses da Anglo-Iranian Oil Company, pedra fundamental da política britânica e já norte-americana na região do Oriente Médio.
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Mossadegh tornou-se primeiro ministro da Pérsia (depois Irã) em 1951. Por essa época quando se deu a nacionalização, os britânicos levaram seu caso à Corte Internacional de Haia... e perderam.
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Desde então os britânicos começaram a conspirar para derrubar Mossadegh, em favor do Xá Reza Pahlavi, soberano que lhes inspirava mais confiança.
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Mas só conseguiram convencer os norte-americanos a entrar na aventura depois que os republicanos chegaram ao poder com Dwight Eisenhower. A partir daí não pouparam esforços, propaganda e dinheiro para derrubar Mossadegh.
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É claro que havia por detrás disso a moldura da Guerra Fria e da presença soviética na região. Mas é claro também que havia uma forte animosidade imperialista contra as políticas nacionalistas no Terceiro Mundo.
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Os Estados Unidos, que mais e mais traziam os britânicos para sua própria ordem e órbita, também se sentiam ameaçados, e em escala mundial. Movimentos nacionalistas e de independência ou autonomia em relação aos impérios agitavam a Ásia, a África e a América Latina.
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No mundo árabe o nacionalismo encontrava forte amparo em forças armadas, como as do Egito e da Turquia. Israel já não era o incômodo que fora para britânicos e norte-americanos, e mais e mais tornava-se um aliado crucial no dominó petroleiro e político do Oriente Médio.
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O alvo tornou-se o movimento nacionalista no mundo árabe. A Pérsia foi a primeira peça do dominó, ou o primeiro degrau da escalada.
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Só a CIA jogou na Pérsia um milhão de dólares (na época, uma soma apreciável, hoje um troco de crise financeira) na propaganda e na compra de ações, não bancárias ou outras desse tipo, mas ações contra o governo de Mossadegh.
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A primeira tentativa falhou, e o Xá, envolvido na conspiração, teve de deixar o país, primeiro para Bagdá, no Iraque (!), depois para a Itália.
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Os norte-americanos o buscaram em Roma, trouxeram-no de volta, e com o apoio de militares americanófilos (como se dizia então), que temiam uma sublevação no Exército, o puseram, mais literalmente, o plantaram no trono, depois da segunda tentativa de golpe, em 1953, desta vez bem sucedida.
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Mossadegh foi condenado à morte por um tribunal de fancaria. Depois teve sua pena comutada para prisão perpétua, que cumpriu primeiro num quartel e depois em prisão domiciliar até sua morte, em 1967.
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Durante esse duplo golpe contra Mossadegh, os aiatolás religiosos receberam um primeiro impulso político generoso. Por parte de quem? Dos norte-americanos e britânicos, que viam neles uma (então não muito poderosa, mas de alguma eficácia) arma anti-comunista, pela ascendência que tinham sobre a população pobre nas cidades e o campesinato.
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E o Xá consolidou seu poder sobre o Irã e sobre a mídia mundial, pois era um dos assuntos preferidos dos “temas de coluna social”. O drama de sua segunda mulher, Soraya, que não conseguia lhe dar filhos (era o que se dizia, pois, em caso de dúvida, aponte-se a mulher), comoveu multidões de leitores, inclusive das revistas Manchete, O Cruzeiro, etc., no Brasil.
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Separado de Soraya, o Xá continuou sendo atração com sua nova mulher, Farah Dibah, proclamada Imperatriz. Aliás, a visita do Xá a Berlim foi um dos gatilhos para as grandes manifestações estudantis de protesto na Europa, em 1967.
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O império do Xá, cada vez mais despótico, repressivo, e sobre os quais pesavam denúncias graves de corrupção, arrastou a Pérsia (que também era chamada de Irã, a pedido de seu pai) a protestos cada vez maiores, apesar de algum progresso material, devido à política do petróleo. (Durante o governo de Mossadegh os países do ocidente suspenderam a compra de petróleo iraniano, querendo levar o país à penúria).
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Para atrair as massas campesinas, o Xá promoveu uma espécie de reforma agrária, tomando terras das organizações religiosas muçulmanas, que não viam com bons olhos a continuidade que deu a algumas reformas modernizantes de Mossadegh, sobretudo em relação ao comportamento e à presença social e econômica das mulheres.
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Mexer nas terras dos aiatolás jogou-os de vez na oposição. Alguns deles, como Khomeini, tiveram de se exilar.
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O império do Xá prosseguiu até 1979, quando uma série de insurreições – a culminante foi a do Exército, que se recusou a atirar na multidão – em Teerã e no interior o obrigaram a renunciar e a fugir.
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A gota d’água foi uma greve de funcionários públicos que literalmente paralisou o Estado. Mas que Irã (o nome Pérsia foi definitivamente abandonado) era aquele, de 1979? Um Irã muito diferente do de Mossadegh.
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Os nacionalistas dos anos 50 tinham sido desbaratados, isolados, presos, mortos. Os comunistas idem. Os liberais ilustrados estavam enfraquecidos, sem liderança, embora junto à classe média o descontentamento fosse enorme.
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A tudo a Savak, a polícia política do Xá, sempre com ajuda da CIA e do MI6, neutralizara, dobrara, destruíra. O que restara? A organização do clero, que ocupou o espaço político deixado vazio, e começou a “revolução islâmica”.
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As primeiras ceifas nessa nova ordem se deram entre os comunistas, tão duramente reprimidos como nos tempos do Xá; junto com eles, liberais laicos e nacionalistas “no estilo antigo”.
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Quando os aiatolás deixaram de ser confiáveis e, além disso, se tornaram poderosos gestores de uma das grandes reservas de petróleo do mundo, o vizinho Iraque, de Saddam Hussein, voltou-se contra eles, e invadiu o Irã.
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Além das ambições pessoais, Saddam temia que o exemplo vizinho contaminasse seu próprio campo. Daquela vez, contou com a nova simpatia dos norte-americanos, que não só o incentivaram, como lhe deram, através da CIA, armas químicas para usar contra os iranianos. Essa guerra, que durou de 1980 a 1988, provocou a morte de um milhão de iranianos.
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Terminada a guerra, houve ainda tentativas de abrir mais espaços políticos por entre as frinchas do império dos aiatolás, sem sucesso duradouro. Consolidou-se a “república islâmica”. A mídia do Ocidente prega continuamente sobre seu atraso em vários aspectos políticos e comportamentais (no que muitas vezes tem razão). Mas quase sempre omitem o papel que os países líderes do Ocidente tiveram e têm nessa consolidação.
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É nessa moldura – em que o poder de fato está, não nas mãos do presidente da república, mas do corpo e do líder dos aiatolás – que aparece o espaço para um político de ambições próprias como Mohammad Ahmadinejad.
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Sem nunca contestar o poder e a palavra dos aiatolás, pelo contrário, apresentando-se como seu fiel porta-voz, Ahmadinejad procurou — ainda procura — sulcar seu próprio caminho nas frinchas desse quadro muito estreito e de terrenos minados.
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O aiatoloá Khamenei, líder do Conselho de Governo, é o chefe das forças armadas e do serviço de inteligência. Qualquer passo em falso põe o político desavisado fora do campo, senão do mundo inteiro.
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Ahmadinejad conseguiu aproximar-se da população mais desvalida através de políticas compensatórias financiadas pelos dividendos do petróleo, quando foi governador da província de Ardabil e quando foi prefeito de Teerã.
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Quando ocupava esse último cargo, chegou a ser apontado para receber o título de “Prefeito do Mundo”, em 2005, da organização internacional “City Mayors”, com base em vários países da Europa e nos Estados Unidos.
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Então ainda não era o perigoso presidente de um país à deriva. Sua indicação (feita no âmbito da organização, não de fora dela) não prosperou porque ele renunciou ao cargo para tornar-se o presidente eleito da controvertida república, o preferido das massas despossuídas e dos aiatolás.
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Como presidente, perseguiu uma facilitação do crédito e uma redução das taxas de juros, além de um controle mais estrito sobre operações financeiras e paralelas.
As oposições não conseguiram mobilizar a população pobre ou remediada, que é a imensa maioria no Irã. Sua vitória recente não surpreende, nem que para isso ele mobilize um sentimento anti-ocidente, anti-Israel, e religioso. E até agora só surgiram acusações de fraude, nenhuma suspeita ou prova mais consistente.
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A questão nuclear, no Irã, não evidentemente, uma decisão apenas sua. Nada seria feito sem o carimbo dos aiatolás, ou sua bênção. Mas ele deu a ela um ritmo próprio, não resta dúvida.
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Embora jure que não pretenda dispor de um arsenal nuclear, é de duvidar que isso não esteja nos seus ou nos planos da “revolução islâmica”.
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Desarmado o Iraque, pelo menos de momento, e pelos mesmos países que promoveram seu ditador, Saddam Hussein, o campo ficou aberto para o Irã, ainda mais diante do isolamento da Síria, único país onde resta alguma sombra daquele nacionalismo antigo, e da batalha da Turquia para entrar na União Européia.
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Uma agenda nuclear é a única coisa que resta ao Irã para se contrapor à supremacia militar de Israel — também no campo das ogivas atômicas. E o destino de Saddam Hussein só deve ter reforçado esse propósito, pois de herdeiro de um partido nacionalista que era, passou a preferido do Ocidente na região, contra o Irã, e teve o destino que teve.
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Além disso, essa agenda e sua manutenção na ordem do dia mundial, o que permite a Ahmadinejad ambicionar o papel de um novo “global player”, lhe valeram uma aproximação política com a Rússia, coisa que dificilmente os aiatolás poderiam empreender, embora a Moscou de hoje nada tenha a ver com os antigos comunistas que eles perseguiram tão duramente quanto a Savak.
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Pesa sobre Ahmadinejad a acusação de negar o genocídio contra judeus durante a Segunda Guerra, e de pregar a destruição do Estado de Israel. Ele afirma tenazmente que não o fez, e há uma verdadeira batalha entre tradutores e lingüistas em torno do que ele teria ou não teria dito, em farsi, nos discursos em que se referiu a ambos os temas.
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A pecha existe, em todo o caso, e ele ainda não agiu de modo peremptório e definitivo para pôr-lhe fim, o que não o ajuda naquela ambição de se tornar o “global player” que ele quer ser. Enquanto ele não fizer isso, a força de sua ação ficará limitada à região. Mas esse é um Rubicão que dificilmente dará vau a quem quiser cruza-lo, depois de ter feito afirmações, para dizer o mínimo, dúbias, a respeito de uma história confirmada e re-confirmada como a do morticínio em massa de judeus na Europa, ou a respeito da destruição do Estado de Israel.
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Hoje, numa margem desse Rubicão em que ele se meteu com essas suas afirmações estão os poderosos aiatolás de seu país; na outra, no momento, o comprometedor e comprometido Benyamin Netanyahu, que acaba de inventar, para conceder à Barack Obama sem renegar seus aliados conservadores em Israel, o conceito de um “Estado sarcófago”, isto é, sem qualquer soberania, que é o que ele diz poder aceitar para os palestinos. Por ora, esse é um campo de posições fixas, sem margem de manobra para ninguém.
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Em tudo, como se vê, está presente essa verdadeira “marca da maldade” (evocando o título do maravilhoso filme de Orson Welles sobre o policial que decide tomar a justiça nas próprias mãos): a presença da unha venenosa do comportamento das potências do Ocidente durante e depois da Guerra Fria.
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