O Mundo de Hoje *
* Álvaro Cunhal
O Encontro Internacional, promovido e organizado pela Fundação Rodney Arismendi, versa sobretudo a situação, os problemas e a luta libertadora na América Latina. Tudo quanto se possa considerar e reflectir sobre a matéria tem porém necessariamente de ter em conta, como o próprio título do Encontro sublinha, o mundo em que actualmente vivemos. No Uruguai, na América Latina ou em qualquer outro ponto do planeta. Daí a nossa reflexão sobre a definição e compreensão de «O mundo de hoje».
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Na evolução da sociedade, a revolução russa de 1917, sob a direcção de Lénine e do partido dos bolcheviques, fica marcada, em milénios de história, como a primeira e única a estabelecer o poder político das classes anteriormente exploradas e a empreender com êxito a gigantesca tarefa de construir uma sociedade sem exploradores nem explorados.
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A construção do socialismo na União Soviética teve profundas repercussões em toda a situação mundial.
Vencendo bloqueios, intervenções, agressões militares e a invasão, a guerra e os monstruosos crimes dos exércitos hitlerianos, a revolução russa de 1917 repercutiu-se em todo o planeta.
Outras revoluções socialistas vitoriosas tiveram lugar. Numerosos povos secularmente subjugados conquistaram a independência. Ruiu o sistema colonial. Criaram-se influentes partidos comunistas em todo o mundo.
E, inspirados pelo exemplo da revolução russa, os trabalhadores em países capitalistas conquistaram importantes direitos.
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Com o seu poderio, alcançado pela construção do socialismo, a União Soviética alterou a correlação das forças mundiais, manteve em respeito durante décadas o imperialismo, tornando a competição entre os dois sistemas um elemento dominante na situação mundial.
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Uma falsa avaliação da situação criou porém nas forças revolucionárias uma ilusão: que era irreversível o avanço revolucionário e o processo em curso de libertação da humanidade.
Para essa ilusão não se tiveram em conta três realidades.
A primeira: a capacidade mostrada pelo capitalismo, mais que os países socialistas, de não só desenvolver as forças produtivas, como de descobrir, desenvolver e aplicar novas e revolucionárias tecnologias.
A segunda: a utilização pelo imperialismo, designadamente pelos Estados Unidos, de colossais meios materiais e ideológicos, a repressão brutal contra os trabalhadores e os povos em luta, colossais meios financeiros, económicos, políticos e militares contra as revoluções, bloqueios, sabotagens, atentados, conspirações, acções terroristas e guerras declaradas e não declaradas.
A terceira: as tendências crescentes nos países socialistas, nomeadamente na União Soviética, para a centralização e burocratização do poder e para a estagnação, pondo em perigo o futuro da sociedade socialista em construção.
Todos estes elementos em conjunto conduziram, na segunda metade do século XX, à vitória do capitalismo na competição com o socialismo.
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Chegamos assim ao final do século defrontando a ofensiva global do capitalismo para se impor em todo o mundo como sistema único e final.
É este o sentido da «globalização».
Pelo seu superior poderio económico, tecnológico e militar, os Estados Unidos lideram, comandam e impõem tal processo.
As guerras por eles impostas e que proclamam ser seu direito próprio e discricionário, não respeitando quaisquer instâncias internacionais, com o cortejo de destruições, atrocidades e genocídios, tornaram-se a arma mais importante da ofensiva.
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À acção terrorista de 11 de Setembro, os Estados Unidos responderam fomentando organizações e acções terroristas, desencadeando agressões e guerras que vitimam igualmente milhares de civis. Proclamando serem os campeões da luta contra o terrorismo, os Estados Unidos tornaram-se a principal força do terrorismo mundial.
Na actual situação mundial, o terrorismo, que prolifera pelo mundo, só pode ser combatido com êxito com orientações, políticas e medidas que façam respeitar, pelos agressores imperialistas, a liberdade, os direitos e a independência dos povos e países agredidos.
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A questão que se coloca aos trabalhadores, aos povos e às nações é se tal ofensiva é irresistível e os trabalhadores, os povos e as nações estão condenados a submeter-se, ou se há no mundo forças capazes de se lhe oporem.
Os trabalhadores, os povos e as nações não podem aceitar que tal ofensiva global seja irreversível. E, se assim é, importa considerar se há e, havendo, quais são as forças capazes de impedir que o imperialismo alcance o seu supremo objectivo.
A nosso ver, são fundamentalmente:
Primeiro: Os países nos quais os comunistas no poder (China, Cuba, Vietname, Laos, Coreia do Norte) insistem em que o seu objectivo é a construção de uma sociedade socialista.
Apesar de ser por caminhos diferenciados, complexos e sujeitos a extremas dificuldades, é essencial para a humanidade que alcancem com êxito tal objectivo.
Segundo: os movimentos e organizações sindicais de classe, lutando corajosamente em defesa dos interesses e direitos dos trabalhadores.
Terceiro: partidos comunistas e outros partidos revolucionários, firmes, corajosos e confiantes.
Quarto: movimentos patrióticos, com as mais variadas composições políticas, actuando em defesa dos interesses nacionais e da independência nacional.
Quinto: movimentos pacifistas, ecologistas e outros movimentos progressistas de massas.
É no conjunto destas forças que pode residir e que reside a esperança de impedir a vitória final da ofensiva do capitalismo visando impor em todo o mundo o seu domínio universal e final.
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O domínio mundial do capitalismo como sistema único e final teria como resultado e componente, segundo os seus teóricos, o «fim das ideologias» e o «pensamento único».
Trata-se de uma utopia da ofensiva global do capitalismo.
O ser humano continua pensando. E o pensamento e a ideologia dos trabalhadores e dos povos oprimidos serão sempre inevitavelmente opostos à das potências e classes exploradoras e opressoras.
Princípios fundamentais do marxismo (filosofia, economia, socialismo), respondendo criativamente às mudanças no mundo, mantêm inteira validade.
Apresentamos ao Encontro Internacional esta nossa reflexão sobre «O mundo de hoje» como sendo também uma proposta de reflexão.
* Contribuição de Álvaro Cunhal para o Encontro Internacional «América Latina: su potencialidad transformadora en el mundo de hoy»
Artigo publicado na Edição Nº1562 AVANTE 2003.11.04
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