A Internacional

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quinta-feira, maio 17, 2007


A raiva de Chaplin

*  João Valente Aguiar
 

Um texto interessantíssimo de Dario Fo - poeta e dramaturgo italiano - sobre a personalidade militante e engajada de Charles Chaplin. A ler.

«Ninguém melhor que Chaplin soube desenvolver a crítica agressiva, cheia de raiva, à ideologia da máquina e, em particular, aos métodos de Taylor, ou seja, os que exploram o homem, inclusive na sua gestualidade»

Sai, nos próximos dias [em Itália], o livro «Charlie Chaplin, Opiniões de um Vagabundo». Esqueçamos que Charles Chaplin foi, no século XX, com toda a certeza, um dos homens mais importantes do espectáculo, em particular do cinema. Exaspera-me, entretanto, o interminável número de crónicas patéticas, lírico ou literário que sobre ele se escreveram, a partir da sua morte

Repescando nesse monte de comentários, adianto alguns: «O fundo judaico da sua arte e da sua indubitável tristeza, a natureza do seu humor de duplo e triplo sentido, é pouco acessível ao público» (Montale). «Tinha no sorrido o pranto do mundo, e nas lágrimas das coisas fazia bailar a alegria da vida» (Giovani Grazzini, no Corriere della Sera). E rótulos, bem… até à saturação: «anarquista-lírico», «individualista-colectivo», «patético», «fantástico», «rebelde», «melancólico», «palhaço da esperança», «grotesco», «existencialista». Ninguém, digo, ninguém, falou alguma vez da sua «raiva».

Chaplin era sobretudo um homem com um sentido do amor e do ódio profundamente arreigado. Odiava quase com fúria o mundo que o rodeava, o poder, a máquina do capital. Odiava a ordem do Estado, com os seus polícias, os seus juízes e as suas prisões. Odiava a ordem moral daquela sociedade, a ordem do lucro comercial, bancário, industrial. A ordem religiosa com as suas hipocrisias, os seus dogmas e as suas falsas esperanças. E, finalmente, odiava a ordem cultural da burguesia e do capital, e a ordem dos seus falsos e muitas vezes infames mitos.

A convencional América do Norte, instalada à volta dos negócios, não o amava, não lhe perdoava as suas simpatias comunistas, os seus pretensos laços com a Rússia, a sua pretensa falta de patriotismo, devida ao facto de nunca ter querido adoptar a cidadania norte-americana.

Julgo que em muito poucas obras do cinema e do teatro dos últimos setenta anos se sentiu de forma tão clara tanto ódio à lógica da máquina que mortifica, humilha, aliena e assassina o homem e a sua humanidade como o que «Tempos Modernos» expressou.

Ninguém melhor que Chaplin soube desenvolver a crítica agressiva, cheia de raiva, à ideologia da máquina e, em particular, aos métodos de Taylor, ou seja, aos que exploram o homem, inclusive na sua gestualidade.

Do mesmo modo atacou toda a ideologia do moralismo norte-americano, o da «boa sociedade», que é infame em certos aspectos mas que é sempre resolvido com o bom coração e a boa vontade dos humildes: opôs-se, em suma, a todo o cinema de Frank Capra. Quando usa o patético, Chaplin usa-o sempre com grande crueldade. Basta recordar o desenlace realmente cruel das cenas de Chaplin na «Rua do Medo», quando distribui comida às crianças famintas e atira o grão de milho à sua volta como se houvesse muitas galinhas a quem dar de comer. Inclusive, quando entra no jogo da felicidade, fá-lo sempre numa fuga a esta sociedade.

No «Quimera do Ouro» há ainda mais raiva. E insulto ao grande logro do capital: «Tenham paciência, sejam bons, todos poderão um dia ter sorte. A sorte é a grande mãe desta sociedade que nos faz a todos iguais». Essa interminável caravana que se dirige para a «esperança», para a riqueza, para o sonho. A história individual é, porém e ao invés, a história de centenas e centenas de angústias, de dificuldades, de violências sofridas, pelo que a história norte-americana sai deste filme muito mais desapiedadamente machucada do que de dezenas de filmes considerados «históricos».

Também neste caso, como sempre, Chaplin não partiu de factos imaginários ou literários mas de uma realidade bem clara e, por isso, nascida e criada sobre as costas e a pele de todos. Como lembra Andreina Lombardi Bom, a tradutora deste livro, ninguém se preocupa em sublinhar a raiva de Chaplin contra a sociedade (curiosamente, entre as entrevistas recolhidas, nenhuma se refere a Tempos Modernos), nem sequer, e sobretudo, a raiva da sociedade contra Chaplin, uma sociedade já exacerbada e exageradamente desconfiada de qualquer coisa que cheirasse a «diferente». O olhar de Chaplin sobre a vida, sobre as relações entre os homens, também sobre a economia e a política, era demasiado heterodoxo, como que para não ofender a autocomplacente América do Norte do pós-guerra: e o atacado respondeu.

Pelo meu lado, permito-me acrescentar que todo o cinema de Chaplin recupera temas e modos que estão na origem do mundo dos palhaços. Os grandes palhaços nunca desenvolveram a sua arte como se ela tivesse um fim em si mesmo, ou seja, como puro divertimento. Por exemplo, o palhaço tradicional do teatro nasce, no século XIX, da personagem do operário destinado ao trabalho de manutenção de jaulas e trapézios. Ou seja, o moço de recados, o «eterno menor de idade»: sobre ele ergue-se sempre a figura ameaçadora do director do circo, que o trata como a um escravo, que não lhe permite beber, que não o deixa aproximar-se das bailarinas, que não lhe consente amar. É um desgraçado, um inferior, homem de carga sem direito sequer a gozar da fantasia própria do circo. É um diferente. E o papel que desempenha é sempre o mesmo, obrigam-no a substituir o homem bala ou a meter-se na jaula dos leões, convencido de que não são verdadeiros, e pronto a fazer as coisas mais inauditas com estes leões que julga fictícios. Esta é a essência da violência, do terror, do engano, do ver-se obrigado a ganhar a vida a qualquer custo. O que importa não é viver, é sobreviver. Quando o palhaço se apercebe de que os leões são de verdade e estão famélicos, não tem outra alternativa que não seja prosseguir o seu papel, porque fora da jaula, como forma de chantagem, está a sua mulher, estão os seus filhos (palhacinhos, talvez anões), que pedem de comer enquanto o director grita: «Se não acabas o número e o público não se ri, despeço-te sem dar-te um cêntimo».

Muitos, contudo, fizeram tentativas desesperadas de apresentar Chaplin como um poeta isolado. E descreveram-no como «um pequeno judeu individualista», como «um anarquista-lírico» que expressa uma arte tão subtil, de «duplo e triplo sentido», «que se torna numa arte para poucos». Descrevem-no como um diferente, mas também como um excelso, um génio isolado, acima das «limitações» de uma massa de iguais.

Não sabem nem querem saber que os «diferentes» que Charlot personifica eram, e continuam a ser, na América do Norte, 70 ou 80 por cento dessa sociedade. O pequeno vagabundo representa o judeu, o turco, o italiano, o irlandês, o espanhol, para não falar dos mestiços, dos negros e dos hispanos, de todos os que se vêem obrigados a vencer as enormes dificuldades e obstáculos da língua, dos costumes e do estilo de uma sociedade que os oprime, os acolhe, os repele, os explora, os manipula como objectos, os esmaga e os deita fora.

Não esqueçamos que com a multidão dos imigrantes, dos diferentes, a sociedade norte-americana duplicou o seu número (fenómeno ímpar em qualquer parte do mundo: basta lembrar que, só de Itália, partiram qualquer coisa como 8 milhões de desesperados em pouquíssimos anos, o mesmo acontecendo na Turquia, em França, em Espanha). A chegada de estes diferentes, e de tanta gente obrigada a dar o salto mortal para manter-se com vida, foi precisamente o sinal característico de uma nova sociedade cruel e monstruosa que, entretanto, no meio do drama dava espaço à esperança.

Chaplin sempre se sentiu o campeão deste povo de excluídos, sempre quis sentir o seu pulso: a prova está em que, acabada a primeira montagem de cada filme, projectava-o em público – público periférico e popular – para sentir os ritmos, verificar os tempos, a aceitação ou rejeição das pausas. Estou convencido que Chaplin trabalhava com o público dentro da câmara. Chaplin sempre actuou como no teatro, como se houvesse uma plateia que lhe marcasse o ritmo.

Mas falemos agora da decadência: o problema de fundo é o discurso ideológico, a tomada de posição do especialista. O exemplo: Chaplin, que vinte anos antes se preocupara com a guerra mundial, com o nazismo, os massacres, a violência do poder em todas as suas formas, não fez o mesmo relativamente ao Vietnam. Apesar de ter a possibilidade, os meios e a autoridade para intervir. Como ignorou também o problema da Palestina e o cortejo de desgraças que há em todo o mundo, por trás da guerra. Deixou de lado o que tinha sido a essência fundamental do seu discurso, a crónica escorreita da realidade, e acomodou-se noutra, certamente mais grata ao poder.

Recordarei, para terminar, uma mulher calabresa, uma camponesa que, entrevistada pela televisão, afirmou: «Charlot era uma pessoa capaz de nos fazer chorar por coisas de que normalmente nos rimos, e de fazer-nos rir com coisas que nos fazem chorar. Era alguém que falava de nós, porque era um de nós».

in Blog As Vinhas da Ira

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