Impressões : Contagiar o Estado
* José Luís Ramos Pinheiro
Entre 1995 e 2000 quase metade das famílias portuguesas (47%) experimentou a pobreza. Setenta e dois por cento dessas famílias mantiveram-se em situação de pobreza, durante dois ou mais anos. Por outro lado, a taxa de pobreza em Portugal não abranda, atingindo dois milhões de portugueses, cerca de 20% da população.
São dados divulgados pela Comissão Nacional de Justiça e Paz, que acabou de realizar uma conferência dedicada aos problemas da pobreza. Porquê? Porque a pobreza é também uma negação de cidadania e de direitos fundamentais, eticamente condenável, politicamente inaceitável e cientificamente injustificável.
A Comissão Nacional de Justiça e Paz chama também a atenção para a transmissão da pobreza de geração em geração, considerando-a anormalmente elevada em Portugal, quando comparada com a situação europeia. No final, foi aprovado um manifesto que visa colocar a questão dos mais pobres na agenda do País.
Fazer da erradicação da pobreza um projecto nacional é de facto um enorme desafio: social, cultural, económico e político. A sociedade civil já faz muito pelos mais pobres, mas pode fazer mais, elegendo a erradicação da pobreza como prioridade e contagiando o Estado nesse objectivo.
Os mais pobres, afastados do círculo da empregabilidade, desmobilizam socialmente: não protestam, sobrevivem, cercados pela roda das carências que os afectam; não fazem greve – geral ou parcial – porque não estão empregados e dariam tudo para estar; não são vistos nas manifestações, ocupadas por gente que assim pretende defender o emprego ou melhorar condições.
Reduzidos na expressão da sua cidadania, os pobres são cada vez menos ouvidos pelos poderes públicos: sofrem mais do que gritam. O Estado, às voltas com uma situação financeira delicada e a braços com reivindicações mais poderosas, não os ouve nem os vê como prioridade.
Não se peça ao Estado apenas, nem sobretudo, políticas assistencialistas. Ausência de reformas e dinheiros públicos mal investidos significam prioridades erradas ou oportunidades perdidas. Por vezes, importa mais discutir as prioridades do Estado e o desperdício de recursos, que a todos pertencem.
Avaliar os investimentos do Estado não é um direito mas uma obrigação: identificando necessidades e analisando efeitos, sobre a actual e a próxima gerações. O TGV ou o novo aeroporto não podem ser excepção.
Os portugueses, cuja opinião todos dizem respeitar, merecem mais do que uma discussão de sabor futebolístico entre a margem sul e a margem norte, como localização privilegiada do próximo aeroporto. Num País com dois milhões de pobres, não há margem para discussões primárias quando estão envolvidos milhões de euros que serão desviados de outros objectivos e de outras metas.
Se é necessário um novo aeroporto para garantir o desenvolvimento e a competitividade do País há que demonstrá-lo de forma inquestionável. Mas se for necessário fazê-lo, que o novo aeroporto seja projectado de forma a garantir amplamente as necessidades futuras. Um investimento colossal numa obra de curto prazo não é um erro, seria um crime.
in Correio da Manhã 2005.05.29
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