PREGÕES (2)
* Mário Sette
Não mudaram muito os pregões do Recife. Ouvem-se ainda hoje alguns dos tempos antigos, embora muitos outros novos existam.
O pregão do homem dos cucuzes é o de outrora e o mais madrugador. Ainda meio escuro é ouvido nas ruas da cidade e nas dos arrabaldes. Insistentemente. Inconfundivelmente. Cedinho. Antes mesmo do "Manhã!… Comércio!…" dos gazeteiros. Brr… Cuscui!
Homens, de tabuleiros de flandres às cabeças, são esperados por todos os que não sabem como tomar o cafezinho cheiroso e quente, sem a saborosa guloseima de milho. O freguês chega afinal, tira a tampa do tabuleiro, e, com uma pazinha de metal arrasta logo o cuscuz amarelinho, úmido, redondo. E gostoso. O cuscuz vem de tempos remotíssimos. Foram os primeiros escravos que trouxeram a receita para nossos antepassados e desde então nunca mais se deixou de pilar o milho de madrugada, de se espremer o coco e de se pôr a massa a cozinhar dentro de um pano alvo à boca de uma chaleira…Com o correr do dia os outros vendedores ambulantes enchem as ruas do Recife. É o das verduras com seus cestos superpostos dentro dos quais se entremostram as talhadas de jerimuns, os gumes dos quiabos, as cabeças de cebolinhas, os molhos dos maxixes.
É o peixeiro com as cavalas e bicudas pendentes dos calões: um portador carrega a mercadoria e o peixeiro vai à frente, de faca em punho, apregoando. "Eh! Bicuda!" É o menino que vende cajus amarrados em grandes rodas vermelhas ou amarelas. É o freguês de bananas, gritando "Maçã madurinha!" É o homem do aipim: "Macaxeira… Bahia!
"Um dos modos de vendagem típicas da capital pernambucana será o de fressuras. Os vendedores carregam os tabuleiros cheios de mocotós, fígados, miolos, miúdos, tudo muito arrumadinho, e vão berrando: Lu! De tal modo que uma pessoa estranha à terra topando com um indivíduo assim, de roupas meio ensangüentadas, de vaca na mão, e dando semelhante berro, pode cair ou correr de susto.
Vendedor ambulante que fez época foi o das vassouras. Ficou mesmo conhecido pelo homem das vassouras. Andava carregando um verdadeiro mostruário da sua especialidade e ia gritando num tom mais de lamento que de oferta:
– Minha gente, olhe o homem da vassoura... O homem da vassoura já vai embora…Pregão também muito interessante, mas que só tem sabor na sua entonação musical é o do vendedor de "lã de barriguda para travesseiros". Também harmonioso e antigo o do mel de engenho: – Mé novo!!Com a vendagem de sorvetes em casquinhas, conduzidos em carrocinhas, o sorveteiro de outrora está desaparecendo. Ele, porém, teve o seu reinado. Nos tempos em que os gelados ainda eram uma novidade, quase uma coisa proibida. Contam os cronistas que o sorvete apareceu no Recife por volta de 1859. Era feito com gelo vindo da Europa… Nem por isso caro. 300 réis o copo. Havia uma casa que publicava um anúncio assim
Na esquina do Rosário
Quer de noite, quer de dia
Há sorvete de patente
Feito por engenharia
um competidor replicava:
Não é por máquina, não
Mas tão bom não há aí
de abacaxi…
Os sorveteiros ambulantes tinham também sua maneira de apregoar muito sonora. Ao escurecer já era ouvida de longe sua doce cantilena:– Sorveeeeeete… É de mangaba!…
O homem da carne de porco, em regra, grita:– … de porco! …de porco!Além da vendagem ambulante, que enche de seu pitoresco o Recife, há, igualmente, com uma cor não menos local, o dos vendedores de rua, mas fixos.
Temos o homem da gelada: um quiosquezinho, com grandes frascos cheios de refrescos, e uma coleção de copos em redor. O de cachorro-quente, nas festas de igreja. A mulher das tapiocas. Esta é uma das mais antigas e típicas. Senta-se sempre numa esquina de rua do bairro de São José ou de arrabalde. Quando não num pé de escada. Tem um fogareiro ao lado, com uma frigideira. Ali, ela espalha a massa de mandioca, salpica o sal, deita o coco e espera que a tapioca fique pronta. Muito alvas, por vezes levemente tostadas, dobradinhas, ela vai arrumando as tapiocas num tabuleiro. Ocasiões há em que a freguesia é tanta que fica esperando pelas tapiocas ainda em preparo.
Embora muito raras, ainda existem as mulheres do mugunzá. Também vendem na rua a sua saborosa mercadoria. À medida que chegam os fregueses, com pratos, tigelas ou terrinas, elas destampam o caldeirão e com uma colher de ágata vão enchendo as vasilhas do caldo grosso de milho, tão perfumado, tão provocador.Ainda passam pelas ruas o freguês das lagostas, o dos caranguejos, o comprador de garrafas e jornais velhos, o das galinhas, montado num cavalo e ladeado por dois caçuás cheios de aves:
– Galinha e capão gordo!
O de ovos não se cansa de gritar, imitando um cacarejo:
– Qué ovos? Qué ovos? Qué ovos? Há, no Recife, um vendedor ambulante que tem para mais de setenta anos de idade e não mudou.
Os quase velhos de hoje o viram assim mesmo em menino. É o homem das ostras. Alto, negro, seco, de calças arregaçadas e pernas sujas de lama, com um samburá na cabeça. O seu pregão é o nosso pregão-vovô:
Eu, tenho ostras
Tenho ostras
Chegada agora…
Chegada agora…
(SETTE, Mário. Maxambombas e maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro, Casa do Estudante Brasileiro, 1958)
in Jangada do Brasil nº 13
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