«Prá Frente Meu Coração»
Quando revivemos um Amigo como José Dias Coelho, cada um de nós traz dele uma imagem sentida, quase privada. Vemo-lo -- eu, por exemplo -- como companheiro de juventude; sonhamo-lo – alguns poderão até recordá-lo – na pátria da clandestinidade; repetimo-lo através dos versos e dos desenhos que nos deixou, traços da sua voz mais privada. E todos, falando dele, pensamos na cruel, na terrível mancha de luto, que marca a sua ausência neste início de liberdade. Estaria aqui e mais além, no comício ou no atelier, não importa: mas connosco. Trabalhando à luz do dia o país que desponta.
Sabemos que é um capítulo do ódio ou do medo, a morte imposta aos militantes da liberdade. Mas sabemos igualmente que é dela que o fascismo faz moeda própria e alimento essencial; que onde haja exploração do homem está ela, a morte, disfarçada de comum e natural, e que, irmã traidora da fome, tem na guerra, em todas as guerras, a sua razão mercenária. Que, desde os berros falangistas do «Viva la Muerte!» às chacinas do Chile, é a Morte, Morte e sempre a Morte, que aparece como exibição imperialista de orgulho e de poder.
Por isso é que os verdadeiros revolucionários amaram e defenderam a Vida com o risco do último sacrifício -- e entre esses, Dias Coelho, o meu amigo de longe e para sempre. Poucos como ele tiveram tão saudável e empenhado gosto de viver, e raros, raríssimos, usaram de tão serena tolerância no desejo de compreender e lutar.
Uma simplicidade imediata fazia com que tudo nele, ideias, gestos, convívio, fosse um comunicar espontâneo -- ou uma entrega confiante, se quiserem. Revejo-o em 1945 numa concentração na Faculdade de Ciências; ou em certas tardes à mesa do velho Chiado (o café e a «Pomba de Picasso» em cima do tampo de mármore); nos passeios do MUD Juvenil (outro roteiro de politização) – percorro, em suma, todo um passado activo de iniciação, de prisões e de alegrias, e encontro sempre aquele sorriso, tão dele, a perdurar sobre o eco e a recordação.
Jornadas estudantis, domingos sobre o Tejo, onde isso vai. Mas tudo tão nítido neste momento, é curioso, tudo tão identificado com ele, Dias Coelho, que é a sua figura que permanece e se transforma em meridiano natural da nossa geração. Assim: como uma vertical sobre o horizonte.
(Nesse tempo, lembro-me bem, cantava-se Lopes Graça em versos de poetas vivos. «Vozes ao alto / vozes ao alto / unidos como os dedos na mão...». Fazia-se teatro com Manuela Porto e pintura militante: novos e velhos no mesmo salão das Gerais de Artes Plásticas. «Desatávamos os nós do silêncio», como diria Eugénio de Andrade, na Memória a José Dias Coelho, escrita em pleno fascismo.
Um espaço, uma reticência da memória, e retomo Dias Coelho, agora no Movimento da Paz: execução dos Rosenberg, milhões de assinaturas a dizer não à morte, Ehrenburg e Éluard, tanta coisa. Aqui, no país muralhado com juízes do Plenário sentados em torres sinistras, também a Paz era difícil. Contudo, triunfava, e era nossa. Na grande leva de obreiros que a erguiam lá estava Dias Coelho: desenhando cartazes, presente em reuniões, angariando fundos, e sempre com aquele sorriso de camponês citadino que lhe iluminava a voz e o olhar.
Assim fazíamos, ele, eu, toda uma geração, a aprendizagem da vida. Procurávamos, quer isto dizer, saboreá-la no mais simples e no mais denso que ela oferecia, e talvez por isso é que, muitos anos mais tarde, ao ler: «Em toda a parte / há um pedaço de mim / que se quer dar» eu tenha reconhecido subitamente a assinatura do homem que fez esses versos: o José Coelho, o companheiro que se repartia e estava inteiro no bom e no difícil, no prazer e na coragem.
Esta capacidade de abranger o mundo e de tudo partilhar foi, tenho a certeza, a poderosa força de José Dias Coelho, aquilo que o impeliu para a tarefa de modificar e construir contra o errado e o desumano. A morte de um camponês ou um aceno de criança levantavam prontamente nele a indignação ou o amor, e, logo, o tal «pedaço de si que se quer dar». Respondia então com o desenho aberto e tranquilo, o traço limpo, urgente, uma necessidade de comunicar e de fazer testemunho. Ou lançava-se ao barro e esculpia, com aquelas suas mãos sólidas de terra-a-terra, o protesto vincado ou o instante de um amigo na sua expressão mais íntima, pessoalíssima. Aconteceu isso nas peças de escultura que nos deixou em desencontrados períodos de trabalho – na cabeça agreste de Redol, por exemplo, ou no busto de Margarida Tengarrinha, tão repassado de serenidade e de melancolia.
Não sou eu quem melhor pode falar dos capítulos interrompidos da biografia de Dias Coelho, artista e militante. Discutimos, horas e serões, os mil enredos da viabilidade da arte numa sociedade repressiva, a propósito dos desenhos que ele fazia na altura para a revista Vértice sobre textos meus, mas não acho que possa reproduzir agora com fidelidade o essencial dessas conversações. Do que me recordo é que me ficou a palavra Comunidade como tema geral de todos os seus trabalhos de então e daquele que viria depois a produzir. Comunidade. Amor. Na realidade, toda a poesia, toda a arte, toda a vida de José Dias Coelho têm essa constante lírica que não é mais do que a exaltação do amor e do entendimento. As tais coisas partilhadas, torno a dizer.
Penso que um homem assim, que se procura através de todas as formas de comunicar ao seu alcance – a arte, a militância comunista – penso que um homem destes só pede da vida (e com que entusiasmo!) a parte mais árdua e mais justa. Sabemos das prioridades que se lhe põem em certas encruzilhadas decisivas, e como escritores da grandeza de Soeiro Pereira Gomes sacrificaram com dor o sonho de comunicar à luz do dia para se entregarem a uma outra tarefa, mais urgente e perigosa: a de arrancarem a pátria à servidão capitalista, restituindo-lhe a palavra livre, a mão e o olhar livres com que ele e todos pudessem descrever e amar.
Com isto não me refiro apenas aos intelectuais, escritores ou artistas que se jogaram na luta total, no tudo ou nada, sobrepondo a acção político ao talento natural. Penso neles, de facto, pensando em Dias Coelho; sei que fizeram tal opção para libertar o Homem e também a Arte que tanto amavam, e para que outros a seguir, mais felizes, a pudessem retomar. Mas penso também que, a par deles, dezenas e dezenas de operários e camponeses dotados para contar em verso ou em imagem as vidas que experimentaram foram para sempre calados pela fome ou pela exploração cultural.
A luta política, aquela que vai às raízes, entenda-se, é uma técnica de construir a felicidade. O livro e a arte enriquecem o homem, é certo; mas não é menos certo que não se pode escrever ou desenhar a palavra Amor, indiferente às vítimas do ódio que nos rodeiam ou ignorando as desigualdades e os pavores. Se hoje o meu, o nosso orgulho de cidadãos é o de, pela primeira vez, podermos adormecer com a consciência de que ninguém neste país está a ser torturado, isso só exige que defendamos esse privilégio com vigilância dobrada e que escrevamos a tal palavra Amor com maior beleza e imaginação.
Foi exactamente para lutar por um momento assim -- essa paz sem remorso, esse direito -- que José Dias Coelho, há muitos, muitos anos, desabafou comigo num fim de tarde: «Zé, eu não suporto mais isto!»
Escolheu, soube-o depois, a via definitiva, a do comunista que se lança, inteiro e definitivo, contra um mundo velho e feroz. Ia, no fundo, em busca de uma outra expressão do homem e levava dentro de si um verso que um dia iria escrever: «Vai prá frente, meu coração...»
Foi. Para a frente e de cara voltada para a luz. E ele, que tanto adorava a cidade e o ar livre, caiu em plena rua, assassinado. Mesmo assim, quando o recordamos e o temos orgulhosamente connosco, é à frente de nós que o sentimos – à frente, como o seu nobre coração.
José Cardoso Pires, in E Agora, José? Publicações Dom Quixote, pp.96-101
Quando revivemos um Amigo como José Dias Coelho, cada um de nós traz dele uma imagem sentida, quase privada. Vemo-lo -- eu, por exemplo -- como companheiro de juventude; sonhamo-lo – alguns poderão até recordá-lo – na pátria da clandestinidade; repetimo-lo através dos versos e dos desenhos que nos deixou, traços da sua voz mais privada. E todos, falando dele, pensamos na cruel, na terrível mancha de luto, que marca a sua ausência neste início de liberdade. Estaria aqui e mais além, no comício ou no atelier, não importa: mas connosco. Trabalhando à luz do dia o país que desponta.
Sabemos que é um capítulo do ódio ou do medo, a morte imposta aos militantes da liberdade. Mas sabemos igualmente que é dela que o fascismo faz moeda própria e alimento essencial; que onde haja exploração do homem está ela, a morte, disfarçada de comum e natural, e que, irmã traidora da fome, tem na guerra, em todas as guerras, a sua razão mercenária. Que, desde os berros falangistas do «Viva la Muerte!» às chacinas do Chile, é a Morte, Morte e sempre a Morte, que aparece como exibição imperialista de orgulho e de poder.
Por isso é que os verdadeiros revolucionários amaram e defenderam a Vida com o risco do último sacrifício -- e entre esses, Dias Coelho, o meu amigo de longe e para sempre. Poucos como ele tiveram tão saudável e empenhado gosto de viver, e raros, raríssimos, usaram de tão serena tolerância no desejo de compreender e lutar.
Uma simplicidade imediata fazia com que tudo nele, ideias, gestos, convívio, fosse um comunicar espontâneo -- ou uma entrega confiante, se quiserem. Revejo-o em 1945 numa concentração na Faculdade de Ciências; ou em certas tardes à mesa do velho Chiado (o café e a «Pomba de Picasso» em cima do tampo de mármore); nos passeios do MUD Juvenil (outro roteiro de politização) – percorro, em suma, todo um passado activo de iniciação, de prisões e de alegrias, e encontro sempre aquele sorriso, tão dele, a perdurar sobre o eco e a recordação.
Jornadas estudantis, domingos sobre o Tejo, onde isso vai. Mas tudo tão nítido neste momento, é curioso, tudo tão identificado com ele, Dias Coelho, que é a sua figura que permanece e se transforma em meridiano natural da nossa geração. Assim: como uma vertical sobre o horizonte.
(Nesse tempo, lembro-me bem, cantava-se Lopes Graça em versos de poetas vivos. «Vozes ao alto / vozes ao alto / unidos como os dedos na mão...». Fazia-se teatro com Manuela Porto e pintura militante: novos e velhos no mesmo salão das Gerais de Artes Plásticas. «Desatávamos os nós do silêncio», como diria Eugénio de Andrade, na Memória a José Dias Coelho, escrita em pleno fascismo.
Um espaço, uma reticência da memória, e retomo Dias Coelho, agora no Movimento da Paz: execução dos Rosenberg, milhões de assinaturas a dizer não à morte, Ehrenburg e Éluard, tanta coisa. Aqui, no país muralhado com juízes do Plenário sentados em torres sinistras, também a Paz era difícil. Contudo, triunfava, e era nossa. Na grande leva de obreiros que a erguiam lá estava Dias Coelho: desenhando cartazes, presente em reuniões, angariando fundos, e sempre com aquele sorriso de camponês citadino que lhe iluminava a voz e o olhar.
Assim fazíamos, ele, eu, toda uma geração, a aprendizagem da vida. Procurávamos, quer isto dizer, saboreá-la no mais simples e no mais denso que ela oferecia, e talvez por isso é que, muitos anos mais tarde, ao ler: «Em toda a parte / há um pedaço de mim / que se quer dar» eu tenha reconhecido subitamente a assinatura do homem que fez esses versos: o José Coelho, o companheiro que se repartia e estava inteiro no bom e no difícil, no prazer e na coragem.
Esta capacidade de abranger o mundo e de tudo partilhar foi, tenho a certeza, a poderosa força de José Dias Coelho, aquilo que o impeliu para a tarefa de modificar e construir contra o errado e o desumano. A morte de um camponês ou um aceno de criança levantavam prontamente nele a indignação ou o amor, e, logo, o tal «pedaço de si que se quer dar». Respondia então com o desenho aberto e tranquilo, o traço limpo, urgente, uma necessidade de comunicar e de fazer testemunho. Ou lançava-se ao barro e esculpia, com aquelas suas mãos sólidas de terra-a-terra, o protesto vincado ou o instante de um amigo na sua expressão mais íntima, pessoalíssima. Aconteceu isso nas peças de escultura que nos deixou em desencontrados períodos de trabalho – na cabeça agreste de Redol, por exemplo, ou no busto de Margarida Tengarrinha, tão repassado de serenidade e de melancolia.
Não sou eu quem melhor pode falar dos capítulos interrompidos da biografia de Dias Coelho, artista e militante. Discutimos, horas e serões, os mil enredos da viabilidade da arte numa sociedade repressiva, a propósito dos desenhos que ele fazia na altura para a revista Vértice sobre textos meus, mas não acho que possa reproduzir agora com fidelidade o essencial dessas conversações. Do que me recordo é que me ficou a palavra Comunidade como tema geral de todos os seus trabalhos de então e daquele que viria depois a produzir. Comunidade. Amor. Na realidade, toda a poesia, toda a arte, toda a vida de José Dias Coelho têm essa constante lírica que não é mais do que a exaltação do amor e do entendimento. As tais coisas partilhadas, torno a dizer.
Penso que um homem assim, que se procura através de todas as formas de comunicar ao seu alcance – a arte, a militância comunista – penso que um homem destes só pede da vida (e com que entusiasmo!) a parte mais árdua e mais justa. Sabemos das prioridades que se lhe põem em certas encruzilhadas decisivas, e como escritores da grandeza de Soeiro Pereira Gomes sacrificaram com dor o sonho de comunicar à luz do dia para se entregarem a uma outra tarefa, mais urgente e perigosa: a de arrancarem a pátria à servidão capitalista, restituindo-lhe a palavra livre, a mão e o olhar livres com que ele e todos pudessem descrever e amar.
Com isto não me refiro apenas aos intelectuais, escritores ou artistas que se jogaram na luta total, no tudo ou nada, sobrepondo a acção político ao talento natural. Penso neles, de facto, pensando em Dias Coelho; sei que fizeram tal opção para libertar o Homem e também a Arte que tanto amavam, e para que outros a seguir, mais felizes, a pudessem retomar. Mas penso também que, a par deles, dezenas e dezenas de operários e camponeses dotados para contar em verso ou em imagem as vidas que experimentaram foram para sempre calados pela fome ou pela exploração cultural.
A luta política, aquela que vai às raízes, entenda-se, é uma técnica de construir a felicidade. O livro e a arte enriquecem o homem, é certo; mas não é menos certo que não se pode escrever ou desenhar a palavra Amor, indiferente às vítimas do ódio que nos rodeiam ou ignorando as desigualdades e os pavores. Se hoje o meu, o nosso orgulho de cidadãos é o de, pela primeira vez, podermos adormecer com a consciência de que ninguém neste país está a ser torturado, isso só exige que defendamos esse privilégio com vigilância dobrada e que escrevamos a tal palavra Amor com maior beleza e imaginação.
Foi exactamente para lutar por um momento assim -- essa paz sem remorso, esse direito -- que José Dias Coelho, há muitos, muitos anos, desabafou comigo num fim de tarde: «Zé, eu não suporto mais isto!»
Escolheu, soube-o depois, a via definitiva, a do comunista que se lança, inteiro e definitivo, contra um mundo velho e feroz. Ia, no fundo, em busca de uma outra expressão do homem e levava dentro de si um verso que um dia iria escrever: «Vai prá frente, meu coração...»
Foi. Para a frente e de cara voltada para a luz. E ele, que tanto adorava a cidade e o ar livre, caiu em plena rua, assassinado. Mesmo assim, quando o recordamos e o temos orgulhosamente connosco, é à frente de nós que o sentimos – à frente, como o seu nobre coração.
José Cardoso Pires, in E Agora, José? Publicações Dom Quixote, pp.96-101
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