Urgeiriça: Minas da morte
* Luís Oliveira
A vida de toupeira deixou marcas que o tempo abriu. Uns não resistiram e regressaram à terra, cadáveres. Outros, poucos, vão sendo consumidos pela doença. Ficaram mais viúvas do que mineiros para contar a história da Urgeiriça.
Olhando da varanda da sua casa para o poço de Santa Bárbara das minas da Urgeiriça, Bernardo Cruz, de 64 anos, não consegue exprimir uma palavra sem tocar na garganta com a mão direita. Um misto de saudade e revolta assalta-lhe o espírito. Lembra-se, por exemplo, dos “bons tempos” passados nos armazéns e nas galerias da mina, das brincadeiras com os colegas mineiros e do dinheiro que fazia da sua casa uma das mais abastadas do couto mineiro. Bernardo trabalhou, durante 27 anos, nas minas da Urgeiriça. Gostou do que fez mas nessa altura – entre 1965 e 1992 – estava longe de pensar “que um dia ia pagar a factura de tantos anos de exposição às poeiras radioactivas”. O ex-mineiro ‘ganhou’ um cancro na traqueia. Usa uma prótese desgastada, que não substitui por falta dinheiro, e só consegue falar quando toca no aparelho que lhe dá a voz aos solavancos. Apesar de tudo resignou-se à condição de homem “cansado de sofrer”.
Bernardo é apenas um das quatro centenas de ex-trabalhadores da Empresa Nacional de Urânio (ENU) que, há mais de cinco anos, exigem a realização de exames médicos periódicos, a obtenção de benefícios na idade de reforma e o pagamento de indemnizações às famílias órfãs, justificando tais pretensões com o facto de a constante exposição à radioactividade lhes ter afectado a saúde.
E porque sobretudo querem que o Estado os ajude “a cuidar da saúde”, os antigos trabalhadores da ENU prometem “endurecer” a luta. Estão juridicamente preparados para mover uma acção contra o Estado e realizar uma manifestação em Lisboa, quando Portugal tomar posse da presidência da União Europeia. Os ex-mineiros não se conformam com a mudança de estatuto: exploraram riqueza das entranhas da terra “para enriquecer o País” e agora sentem-se “abandonados” pelo Estado, o mesmo que os “acarinhou” durante décadas.
Dezasseis anos depois do encerramento das minas, não há nenhuma família que, directa ou indirectamente, não tenha sido atingida por uma doença do foro oncológico. Cancro, “palavra maldita”, é o que mais se ouve das pessoas quando interpeladas para falar sobre a realidade que durante décadas dinamizou aquele lugar de Canas de Senhorim, Nelas. De acordo com António Minhoto, porta-voz dos ex-trabalhadores da ENU, só nos últimos cinco anos morreram 80 pessoas que “tinham em comum o facto de terem trabalhado nas minas”. “Esta terra transformou-se nos últimos anos como um ambulatório onde se tira um bilhete para a morte. Estamos saturados de ver morrer os nossos colegas”, refere José Tavares Moitas, ex-mineiro e durante muitos anos vigilante do complexo mineiro.
Se o número de mortes de ex-trabalhadores da ENU alarmou as três centenas de habitantes que ainda dão vida à Urgeiriça, o estudo científico a que foi sujeita a população de Canas de Senhorim realizado pelo Instituto Ricardo Jorge veio aumentar o medo dos ex-mineiros.
ESTUDO CONFIRMA CONTAMINAÇÃO
O estudo científico, segundo António Minhoto, “vem provar a contaminação da população envolvente das minas da Urgeiriça e sua escombreira quando refere a concentração de polónio e chumbo no cabelo das pessoas”. Sendo assim, considera não haver dúvidas de que está mais que provada a causa-efeito para as mortes de ex-trabalhadores da ENU.
“Mas ainda há alguém que duvide de que todos nós estamos queimados por dentro?”, interroga-se Alfredo Magalhães, de 74 anos, um dos poucos mineiros de “fundo de mina” que continua vivo. “Todos os outros já morreram. Sou dos mais velhos. Ainda estou vivo mas não deve ser por muito mais tempo porque tenho um cancro na próstata, pó no pulmão esquerdo e sou reumático de primeira categoria”, afirma, apesar de tudo, com humor.
Alfredo Magalhães nasceu em Cabeceiras de Basto mas a fome desde muito cedo o encaminhou para o trabalho e para as minas da Urgeiriça, onde trabalhou durante vinte anos, bem lá no fundo –- a cerca de 800 metros de profundidade. “Porque se ganhava um pouco mais” – 26 escudos por mês – este mineiro minhoto optou por pegar no martelo. “Por dia cheguei a abrir 60 a 70 furos de metro e meio. Trabalhávamos que nem escravos. E sabe qual foi a recompensa?”, interroga-se, para responder de pronto: “Nenhuma. A empresa fechou e deixou-nos na miséria, carregados de doenças.”
Alfredo recorda-se do dia em que o encarregado baixou ao fundo da mina e anunciou a duplicação do salário. “Foi no 25 de Abril de 1974”, lembra-se “perfeitamente” porque deixou “de comer sardinha” para passar “a degustar frango”.
Os tempos duros de mineiro não se esgotaram no fundo da mina. Hoje, Alfredo está a “pagar a factura” de ter tomado muitos banhos de urânio e de ter respirado as poeiras que lhe tolheram os pulmões. “Sou um homem podre, sem forças para nada. Só ainda não embarquei porque tenho muito cuidado com a alimentação”, conclui.
Voltando a Bernardo Cruz, (o mineiro que tanto gritou na mina para avisar os colegas das explosões e que agora para falar tem de tocar na velhinha prótese) é considerado como um “exemplo claro” de “esquecimento”.
Quando lhe foi diagnosticado o cancro na traqueia ficou desesperado mas foi com “serenidade” que optou pela operação. O seu amigo Casemiro não quis ser operado e acabou por morreu apenas dois meses depois.
Mas antes da operação, Bernardo gastou “muito dinheiro” nas consultas em especialistas e não teve apoio. “Nem para pagar as viagens a Coimbra. Fui muitas vezes de táxi”, diz. “E agora querem tirar-lhe a ambulância que o leva para Coimbra. Mandaram-no ir de autocarro”, intromete-se a esposa, Ana Cruz, também doente – tem três nódulos na tiróide.
Rara, muito rara é a casa da Urgeiriça onde não tenha batido nenhuma tragédia. A morte invade-lhes a memória e tira-lhes a alegria. Lamenta-se as doenças e chora-se a perda. Emília, Maria, Mariana, Trindade e Ilda têm o comum o facto de serem viúvas de mineiros. Não conseguem segurar as lágrimas quando falam dos maridos, sofrem num silêncio que lhes “consome a alma”. Como elas há centenas de outras que viram partir os companheiros, homens que em menos de um mês saíam das galerias para uma cama de hospital onde, impotentes, apanhavam o vagão da morte.
Algumas viúvas como ‘recompensa’ pela morte dos mineiros ganharam um trabalho na empresa que explorava as minas. “Era norma dar trabalho às viúvas para elas poderem sustentar os filhos órfãos de pai”, adianta Alfredo Magalhães.
'PARECEM CADÁVERES AMBULANTES'
As marcas da vida dura estão bem patentes em Sílvio Martins, hoje com 75 anos mas que ficou paraplégico quando tinha 37. Era um “exigente” capataz mas também “amigo” dos mineiros que supervisionava. Em 1965 um desabamento de pedras no 14.º piso de uma galeria deixou-o paraplégico. “O Estado nunca me ajudou. Eu estou assim mas há aí pessoas que são uns cadáveres ambulantes a quem ninguém deita a mão”, conta Sílvio Martins do interior da mota que adaptou à sua deficiência. Para Adelino Caria, serralheiro e soldador, notam-se bem as diferenças de fisionomia entre um homem que trabalhou nas minas e o que não o fez. “Nós temos um aspecto mais doentio, carregado e desgastado”, afirma.
Apesar de tudo, estes mineiro sobreviventes garantem ser “felizes” por o terem sido, mas lamentam que tenham de pagar “bem caro” o perigo.
“De galeria em galeria até à morte”, era e é o medo deles.
CHUVADAS NO INVERNO AMEAÇARAM MONDEGO
A Empresa de Desenvolvimento Mineiro procede a trabalhos de recuperação ambiental na Barragem Velha da Urgeiriça – onde estão depositados quatro milhões de toneladas de resíduos –, uma intervenção orçada em seis milhões de euros. Estes trabalhos estiveram parados mas foram retomados no Inverno passado depois de a associação Ambiente das Zonas Uraníferas ter alertado para o facto de as fortes chuvadas transformarem as areias radioactivas da Barragem Velha da Urgeiriça em lamas que estavam a correr para o rio Mondego. “A situação era muito grave. Aquelas lamas podiam contaminar as linhas de água e escorrer para o rio Mondego”, diz António Minhoto.
A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro enviou técnicos para o local que analisaram a situação e chegaram à conclusão de que “muito dificilmente” as lamas radioactivas atingiriam o Mondego.
AS VIÚVAS
"MORREU DE CANCRO NO PULMÃO" (Helena, 63 anos, enviuvou do mineiro A. Cunha)
“O meu marido morreu de cancro. Foi doloroso. Para sobreviver tive de me agarrar ao trabalho. Recebo 200 euros de pensão, mas gasto 100 em medicamentos porque só respiro por um pulmão.”
"TRABALHOU NA ZONA PERIGOSA" (Emília Costa, 59 anos, perdeu o marido há quatro)
“Aconteceu aquilo que temíamos. O meu marido trabalhava na zona mais perigosa - empacotava o urânio. Morreu há quatro anos com um cancro na traqueia. Tive uma trombose duas semanas depois.”
"DEU A VIDA PELO TRABALHO" (Trindade Fernandes, 63 anos, viúva de mineiro)
“O meu marido era capataz. Deu a vida pelo trabalho. Durante muitas semanas não viu a luz do dia - saía para o trabalho de madrugada e só voltava de noite. Morreu muito magro e vencido pelo urânio.”
"MORREU DEPOIS DA 4ª OPERAÇÃO" (Ilda Fernandes passou fome depois de enviuvar)
“O meu homem trabalhou no fundo da mina durante 28 anos, sempre muito duro. Depois ficou muito doente e acabou por morrer depois da quarta operação. Passei fome para conseguir pagar a casa.”
"ESTAMOS FARTOS DE TANTO DESPREZO" (António Minhoto, porta-voz dos mineiros, não cala a revolta)
CM – Por que é que os ex-trabalhadores da Empresa Nacional de Urânio se sentem abandonados pelo Estado?
António Minhoto – Porque há muitos anos que reclamamos mais atenção para os nossos problemas, que são graves, e ninguém nos liga nenhuma. Estamos fartos de tanto desprezo
– Há algum caso dramático mais urgente?
– Muitos. Basta falar com ex-mineiros e mulheres que enviuvaram para ver a situação desgraçada em que estão. É a altura de os responsáveis deste País olharem para nós. O esquecimento já provocou, nos últimos cinco anos, a morte a 80 ex-trabalhadores.
– Vão endurecer a luta. Até onde podem ir?
– Chegou a altura de dizer basta, queremos que o Governo se digne dialogar connosco. Caso não nos receba a curto prazo vamos mover uma acção em tribunal contra o Estado e, se nada for feito até Junho, organizaremos uma manifestação em Lisboa no dia da tomada de posse da Presidência Europeia.
– A realização de exames médicos é a vossa principal reivindicação. Porque é que ainda não foram feitos?
– Pergunta bem. Nós também não entendemos, porque com a saúde não se brinca. É a vida dos ex-trabalhadores que está em causa. Sempre que tentamos falar com o Governo empurram-nos de ministério em ministério – da Saúde, Economia e Trabalho – e ninguém se entende.
– São caros?
– Trata-se de exames muito complexos e caros mas isso não pode ser um entrave porque estes homens já deram muito dinheiro a ganhar ao Estado.
SAIBA MAIS
150 toneladas de urânio permanecem armazenadas no complexo das minas da Urgeiriça. O urânio está a ser vendido para a Alemanha, voltou a ser um minério com procura.
79 milhões de euros é a verba necessária para a resolução dos problemas ambientais associados às explorações uraníferas abandonadas na Região Centro.
CAUSAS
As doenças que afectam os ex-trabalhadores da ENU e da população que reside perto das minas são provocadas pelo contacto com o urânio e com as poeiras.
CURA
As doenças do foro oncológico – as que mais afectam os ex-mineiros – sempre que detectadas a tempo têm cura. Os clínicos recomendam uma forte vigilância.
CONSELHOS
Para as pessoas que residem em zonas uraníferas aconselha-se a ventilação da casa (abrindo janelas) e a medição constante do nível de radiação.
in CORREIO DA MANHÃ 2007.05.05
Fotografia de Nuno André Ferreira
in CORREIO DA MANHÃ 2007.05.05
Fotografia de Nuno André Ferreira
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