Em vários blogs (Kontratempos, Arrastão, Água Lisa) surgiram textos – na sua maioria escritos com ligeireza e pouca densidade analítica – com uma postura de maior ou menor branqueamento do que foi o Estado Novo. Já tive oportunidade de identificar o regime que vigorou entre 26 e 74 em Portugal como claramente representativo do fascismo. Sublinhe-se novamente apenas alguns dos argumentos utilizados contra as teses revisionistas surgidas em alguns blogs de direita.
Muitos dos postulados apresentados pelo revisionismo histórico partem do pressuposto que o Estado Novo não seria um fascismo porque teria sido menos violento e com menos mortes e presos políticos que nos casos italiano e alemão. Nas palavras de alguns desses artífices de piruetas históricas não haveria no salazarismo uma “concentração patológica autoritária”. Um erro básico consiste em confundir diferenças de grau com diferenças de natureza. Ou seja, em vez de analisar as condições estruturais partilhadas entre o Estado Novo (a variante portuguesa do fascismo), o fascismo italiano e o nazismo alemão, preferem atender, de um lado, a pormenores diferenciadores mas que não modificam a essência de fundo dos regimes fascistas (por exemplo, o argumento de que a Mocidade Portuguesa não funcionou nunca em pleno como em Itália e na Alemanha ou de que Salazar era mais “padreco” que os seus amigalhaços italiano e alemão) e, de outro lado, à questão meramente quantitativa do número de vítimas. Como se o próprio fascismo português não tivesse provocado centenas de vítimas mortais entre 1926 e 74 em Portugal, já para não mencionar as largas dezenas e dezenas de milhares de soldados portugueses e dos vários países que lutaram contra o domínio colonial de Salazar.
Se se tomar o número de vítimas de cada regime político como critério, muito poucos regimes se salvam nas contas da violação dos direitos humanos. Por isso, analisar teoricamente os regimes políticos a partir de tal critério obscurece mais do que elucida, na medida em que leva, em última instância, a colocar no mesmo saco casos tão distintos e antagónicos como a Alemanha de Hitler, a União Soviética de Staline, a ditadura militar-fascista de Pinochet, etc. O recurso a este critério demonstra não só a sua incapacidade para discernir as propriedades estruturantes dos vários regimes políticos, como prefere agrupá-los a todos – por comodidade que pouco parece ter a ver com critérios objectivos, mas antes de propaganda política, quando não se reivindica do anti-comunismo – sob o epíteto de “ditaduras” ou “estados totalitários e autoritários”. Ora, esse critério também demonstra as contradições dos seus defensores. De facto, se há Estado torcionário, assassino e totalitário na contemporaneidade, esse Estado seria os EUA, e que muito provavelmente surgiria no top dos Estados mais sanguinários da História. Pelo andar da carruagem, cada vez mais perto e ameaçando ultrapassar a barbárie nazi.
Resumindo, dentro desta concepção todos os regimes seriam ditaduras – à excepção, claro está, dos EUA e seus aliados ocidentais – e, assim, o comunismo seria equiparável a fascismo. Deste modo, por um lado, confunde-se uma ideologia política libertadora e mobilizadora dos trabalhadores e dos povos por uma sociedade sem exploração e opressão (o comunismo) com uma ideologia política ultra-obscurantista, retrógrada, irracionalista, cultivadora da morte e legitimadora de uma suposta superioridade (social, étnica ou outra) das elites sobre as massas (o fascismo). Por outro lado, as teses do revisionismo histórico tentam fazer crer que sistemas sócio-políticos que pretendiam construir uma sociedade socialista – constituídos a partir da luta popular contra a opressão e a exploração capitalistas e que inscreveram no seu esqueleto social e institucional conquistas sociais e civilizacionais importantíssimas (horário das oito horas, igualdade entre homens e mulheres, direito a um emprego estável e a um salário condigno, direito à segurança social, educação e saúde públicas, etc.) – seriam idênticos a sistemas sócio-políticos fascistas que se formaram sobre a repressão bárbara do movimento operário, no retirar incondicional de direitos sociais, políticos e económicos da classe trabalhadora e que prosseguiram uma dinâmica política de claro benefício do grande capital e de constante repressão – umas vezes mais direccionada apenas contra as lideranças políticas de esquerda, noutras vezes reprimindo greves operárias no seu conjunto – é, no mínimo, intelectualmente desonesto.
João Valente Aguiar no Blog AS VINHAS DA IRA
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