A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

domingo, abril 22, 2007


A crise académica de 1962

Notas sobre o contexto histórico



Membro do Secretariado do CC do PCP

A “crise académica de 1962” (1) constituiu uma das expressões mais massivas da resistência estudantil à ditadura fascista. De algum modo, é justo assinalá-lo, foi a primeira das grandes lutas dos estudantes que varreram a Europa na década de sessenta, facto que resulta inteiramente lógico perante o denso nó de contradições da sociedade portuguesa, o amadurecimento da crise revolucionária, a actuação, fora e dentro de Universidades e Liceus, de uma força de vanguarda capaz de estabelecer uma ligação consequente entre as reivindicações estudantis e a aspiração libertadora do povo português. Queiram ou não aqueles que hoje procuram apagar o papel dos comunistas e instrumentalizar tão marcante efeméride para fins de promoção pessoal ou objectivos políticos sectários.

Não se trata aqui de descrever os acontecimentos ou traçar uma cronologia da “crise”, mas tão só destacar alguns traços marcantes e situá-la no contexto mais vasto da luta do povo português.

Se, muito justamente, o 24 de Março se tornou em Portugal no “Dia do Estudante” é porque foi precisamente nesse dia de 1962 que, com a violenta carga da policia de choque sobre os milhares de estudantes que desfilavam no Campo Grande (2), se abriu um prolongado período de dura confrontação entre os estudantes e o governo que, durante meses, se estendeu a quase toda a Universidade, sacudiu o país, abalou o regime. Um confronto marcado pelo audacioso desencadear da greve às aulas na maioria das Faculdades – o “Luto Académico” lançado em 26 de Março com a criativa palavra de ordem “ofenderam-te, enluta-te!” – com a ocupação de instalações (3), gigantescos plenários e concentrações, desfiles e manifestações dentro e fora dos recintos universitários, envolvendo sobretudo as Universidades de Lisboa e Coimbra, onde o Movimento Associativo estava mais organizado e havia maiores tradições de luta. Um confronto que se desenrolou no quadro de uma repressão violentíssima, com cerco, invasão policial e encerramento de instalações associativas e académicas (4), imposição de Comissões Administrativas, perseguição de dirigentes e activistas, prisões em massa, violentas cargas da polícia de choque em Lisboa capitaneada pelo odiado capitão Maltês, expulsões. Confronto que envolveu uma gigantesca campanha de desinformação anticomunista por parte do governo fascista, mas que colocou do lado dos estudantes e das suas justas reivindicações grande número de professores e a solidariedade das populações. Confronto em que milhares e milhares de estudantes sentiram na própria carne a natureza da violência e do obscurantismo fascista, despertaram para uma empenhada luta pela democracia e o progresso social, muitos dos quais prescindindo deliberadamente de uma promissora carreira profissional, e arriscando mesmo a liberdade e a própria vida. Tal como as lutas do MUD Juvenil, também as lutas estudantis do início dos anos sessenta, embora certamente em menor dimensão, foram uma grande escola de formação de antifascistas e de revolucionários.

Da “crise académica de 62” há certamente dirigentes e activistas que foram protagonistas destacados, com méritos individuais próprios que, se não é lícito apagar, seria inapropriado exagerar até porque, como sempre sucede com o ”apelo da floresta”, não poucos mudaram entretanto de campo e negam hoje valores que então os colocaram nas primeiras linhas da luta. Mas se fosse necessário indicar alguém não poderia esquecer-se o José Bernardino, Secretário-Geral das Reuniões Inter-Associações em 60/61, funcionário do PCP na clandestinidade e membro do seu Comité Central quase até à sua morte prematura, responsável pela organização e ligação aos estudantes comunistas até à sua prisão pela PIDE em Maio de 62. Creio porém que o que maior interesse poderá hoje ter, será evidenciar circunstâncias que tornaram possível jornadas de tanta envergadura e importância política como as lutas estudantis de 62 e mesmo, num plano mais amplo, da década de sessenta. O "abc" do materialismo histórico ensina que, se são as mulheres e homens que fazem a História, são as circunstâncias históricas que os agigantam, produzindo e revelando aqueles que protagonizaram os grandes acontecimentos e mudanças.

Neste sentido algumas contribuições.

1. A história do Movimento Estudantil português (M.E.), sendo inseparável da História do povo português, tem a sua própria História, o seu património próprio, a sua própria “memória”.

Sucessivas gerações de estudantes apoiaram-se com vantagem em anteriores experiências para o desenvolvimento da sua luta. Isto foi particularmente nítido durante o fascismo. Refiro-me por exemplo à luta central pelo direito de associação, pela autonomia da universidade, pela representação estudantil nos órgãos da Universidade, pela democratização do ensino. É ver a história da celebração da "Tomada da Bastilha" em Coimbra ou as vicissitudes da luta pelas AA.EE, sem esquecer os Comités de Defesa Académica, ou a luta pela representação estudantil nos órgãos universitários, em que é oportuno recordar o camarada Álvaro Cunhal. A própria revolução do 25 de Abril não representou um corte com formas de organização e objectivos que vinham detrás, embora naturalmente significasse um salto qualitativo. Seria importante que esta história própria fosse melhor sistematizada e divulgada. Ninguém melhor que o PCP está em condições de dar uma contribuição nesse sentido.

2. O M.E. não se reduz ao Movimento Associativo (M.A.). Nem as formas de organização dos estudantes às Associações de Estudantes (AA.EE.).

As grandes lutas estudantis, com mais ampla base de massas e maior significado político, foram conduzidas em torno das AA.EE. e (ou) tendo como suporte organizativo fundamental as AA.EE. ou as C.P.A.s. (Comissões Pró-Associação).

Mas a própria luta no plano do M.A. e o seu carácter amplamente unitário e de massas não seriam possíveis sem a existência de formas de organização política, semi-legais, ilegais e clandestinas, a começar naturalmente pelo PCP e outras organizações que, como o MUD Juvenil, contri-buíram decisivamente para relançar o amplo movimento associativo dos anos 50 que veio a desembocar na grande luta de 1957 contra o célebre decreto 40.900 (que visava espartilhar e esvaziar do seu conteúdo as AA.EE.) e nas grandes lutas de 1962.

Por outro lado a luta estudantil nunca se circunscreveu ao M.A., sendo particularmente de destacar: a intensa actividade nas colectividades de cultura e recreio; a luta contra a repressão e pela liberdade e amnistia dos presos políticos; a intervenção nas batalhas eleitorais, como em 61 ou 73; a luta contra a guerra colonial e de solidariedade com os povos em luta (como Cuba, Argélia, Vietnam, cujo exemplo de heroismo muito estimulou e "incendiou" a vanguarda estudantil); a participação dos estudantes em grandes jornadas da luta democrática e popular como 5 de Outubro, 31 de Janeiro, 8 de Março e, sobretudo, 1º de Maio.

3. O M.E. afirmou-se ao longo da noite fascista como uma importantíssima componente do movimento popular e democrático.

O fascismo perdeu a batalha da fascização das Universidades. Nunca conseguiu que a Mocidade Portuguesa e outras organizações de extrema direita tivessem qualquer influência significativa entre os estudantes. Mesmo estruturas e serviços que foi forçado a criar (como o CDUL, Cantinas, Serviços Sociais) tendo como objectivo seduzir os estudantes e alimentar o elitismo, escaparam-lhe rapidamente das mãos ou tornaram-se terreno de luta reivindicativa. As AA.EE. foram encerradas por longos períodos, impostas Comissões Administrativas, os seus dirigentes mais destacados expulsos das universidades e presos, mas nunca foram liquidadas nem mesmo dominadas. Trata-se de uma extraordinária conquista dos estudantes.

Outro aspecto é a contribuição importante do M.E. para a luta geral do povo português.

As grandes lutas estudantis de 62 contribuiram fortemente para a viragem no clima político português, no sentido de enraizar nas massas a tese fundamental do PCP da crise da ditadura e de que a luta popular de massas (e não o golpismo palaciano e o vanguardismo inconsequente) era o caminho para pôr fim ao fascismo e conquistar a liberdade. (5)

Mais adiante as grandes lutas de 1969 em Coimbra - juntamente com as greves operárias de Janeiro/Fevereiro desse ano - tiveram um grande papel no desmascaramento da “demagogia liberalizante” do Governo de Marcelo Caetano (e na derrota das ilusões e concepções oportunistas correspondentes sopradas pela burguesia liberal) desvendando a sua verdadeira face.

O próprio MFA, assim como o ascenso da luta contra as guerras coloniais, é inseparável da politização de numerosos oficiais milicianos saídos das lutas estudantis.

4. Mas a combatividade e envergadura de massas do M.E. só pode compreender-se colocando-o no seu contexto sócio--político. Concretamente as grandes lutas de 1962, talvez as mais importantes lutas estudantis de massas sob o fascismo, são inseparáveis: do clima geral de ascenso da luta popular e democrática; das manifestações populares de protesto de Almada, Covilhã, Alpiarça e muitas outras localidades contra a farsa eleitoral de novembro de 1961; das lutas dos assalariados agrícolas do Alentejo e Ribatejo que levaram à conquista histórica das 8 horas; das grandes manifestações do 31 de Janeiro e 8 de Março no Porto e, sobretudo, do 1º de Maio de Lisboa em que participaram cerca de 100.000 pessoas e que marca uma viragem no sentido da afirmação da classe operária como força social determinante da luta antifascista, e o Dia do Trabalhador como principal data aglutinadora da luta democrática; do desencadeamento da luta armada contra o colonialismo português e do início da guerra colonial; de acções que, como o golpe de Beja ou o assalto ao “Santa Maria”, para além do seu carácter radical pequeno-burguês, marcam o fim das “ilusões constitucionalistas” e a ideia de que a força das armas é indispensável para pôr fim à ditadura.

De sublinhar ainda o estímulo provocado pela fuga de Caxias, pelo início das emissões da Rádio Portugal Livre (RLP) e depois da Rádio Voz da Liberdade e a própria criação da Frente Patriótica de Libertação Nacional (F.P.L.N.).

A tudo isto há que acrescentar a influência de importantes factores externos onde o ascenso do movimento nacional-libertador e a desagregação dos impérios coloniais, as revoluções cubana e argelina, os notórios avanços da URSS e dos países socialistas, estimulam a combatividade de amplos sectores estudantis.

As grandes acções das massas estudantis de 1962 são incompreensíveis sem as situar neste ascenso geral do movimento operário e democrático em Portugal e no contexto internacional de avanço libertador. Tal como depois, a sua quebra e o seu refluxo. Este, desde logo resultado de violentíssima repressão contra os estudantes (mais de um milhar de estudantes presos e expulsos das universidades, encerramento de AA.EE, violentíssima repressão sobre o PCP, particularmente com a vaga de prisões em Janeiro de 1965) é também inseparável do refluxo geral do movimento popular, que será de novo ultrapassado com as possibilidades de luta abertas com o aprofundamento da crise do fascismo e a “demagogia liberalizante" marcelista. A espantosa acção de massas e as vitórias extraordinárias alcançadas, são expressão dessa nova situação que, com altos e baixos, irá desembocar na revolução de Abril.

Uma palavra muito breve sobre o papel do PCP, “o Partido”, e dos estudantes comunistas na “crise académica de 1962” e no movimento associativo e estudantil em geral. Foi simplesmente determinante e insubstituível. Para garantir o seu carácter unitário, democrático e de massas como para assegurar a articulação indispensável com o movimento popular e antifascista. Basta ver em que direcção eram orientadas as campanhas de desinformação e sobre quem recaiu o grosso da repressão. Este um assunto que se procurará desenvolver em ulterior ocasião, sem entretanto deixar de rejeitar desde já, com a maior veemência, tentativas de revisão da História que, diminuindo e deformando o papel determinante da classe operária e do seu Partido na luta libertadora do povo português, tentam também ocultar o papel dos estudantes comunistas e instrumentalizar a memória de grandes lutas estudantis para fins contraditórios com a generosidade, a coragem e o conteúdo de esquerda e revolucionário que, como em 1962, as caracterizou.

Notas:
(1) A causa próxima da "crise" reside na proibição do "Dia do Estudante" - significativamente com o lema "a unidade de hoje pela união de amanhã" - e da luta pela sua realização, em cuja condução desempenhou papel de primeiro plano a RIA, Reunião Inter-Associações.

(2) Manifestação pacífica que partiu da cidade universitária em direcção ao "Restaurante Castanheira" no Campo Grande, onde o Reitor Marcelo Caetano prometera um jantar.

(3) São de destacar a ocupação das instalações da Associação Académica de Coimbra e, muito especialmente, a ocupação da cantina da cidade universitária de Lisboa por mais de mil estudantes, em apoio e defesa dos 80 activistas em greve de fome no local, que terminou com a sua prisão em massa no dia 10 de Maio.

(4) O mais significativo foi o encerramento da Associação Académica de Coimbra onde, de certo modo, com as celebrações da Tomada da Bastilha em Novembro de 1961, tinha começado esta nova fase da luta estudantil, encerramento que se manteve durante vários anos até às vésperas da eclosão da grande crise de 1969.

(5) É particularmente útil, para quem quiser aprofundar esta rica temática, voltar ao "Rumo à Vitória", documento que, sob as mais diversas formas de impressão, teve uma circulação espantosa (clandestina, claro) entre os estudantes - "Rumo à Vitória", Edições "Avante!", 2ª ed. Agosto/2001.

«O Militante» - N.º 257 - Março/ Abril de 2002

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