Autor de canções de intervenção como ‘A Morte Saiu à Rua’, ‘Avô Cavernoso’ ou ‘Grândola Vila Morena’, José Afonso estende a sua influência até hoje
* Luis F. Silva
José Afonso morreu há 20 anos, mas a canção de intervenção de que foi o principal intérprete não desapareceu consigo. Pelo contrário. Duas décadas depois a influência de Zeca permanece viva e estende-se a todos os géneros, do rock ao heavy metal e, em particular, ao hip-hop, a música urbana por excelência deste início de século.
As mais notadas diferenças residem nos propósitos (hoje mais sociais do que políticos) e na linguagem, como reconheceu Sam the Kid, salientando, porém, que “os tempos eram outros”.
“Naquela altura, antes do 25 de Abril, os músicos eram pessoas mais intelectualizadas e a linguagem das suas canções era muito mais elaborada do que é hoje. E acho que isso não se devia só à censura. O ‘Vampiros’ é um caso evidente, mas há outras letras cujas metáforas não apanho...”, acrescentou.
Para o músico, que confessa ter alguns discos de José Afonso (‘Cantigas do Maio’, ‘Vampiros’, ‘Com as Minhas Tamanquinhas’), “a linguagem do hip--hop é mais directa, usa a linguagem da rua, o calão... O próprio Vitorino, que passou por esses tempos, já me disse isso”, frisou.
Destacando a “postura simples, humilde e de pessoa do povo” de José Afonso, Sam the Kid estreou-se com canções de intervenção em ‘Pratica(Mente)’, recentemente editado.
“Tenho o ‘Abstenção’, que é uma canção em que mostro a minha indiferença pela política, mas a verdade é que represento muitos jovens que não se sentem identificados com os políticos que temos. Mas a canção tem uma mensagem de esperança”, disse. Outro dos temas de intervenção é “o ‘Negociantes’, em que abordo a realidade desde que o euro apareceu. As pessoas hoje têm de ter outra actividade porque só o emprego não dá para viverem condignamente. Pelo meio meto a visão de um ex-presidiário, que não consegue arranjar emprego, falo dos políticos e questiono para onde vai o dinheiro da retenção na fonte”, confessou, antes de frisar que “há que valorizar o hip-hop enquanto música e não apenas a mensagem”.
A influência de José Afonso é também referida pelos Mundo Secreto, uma jovem formação hip-hop. Francisco um dos membros do grupo, cresceu “a ouvir os discos dele [Zeca Afonso] e não só”, disse, destacando o carácter “positivo” da mensagem das canções de José Afonso.
ROCK AMOLECEU
O hip-hop é hoje a canção de intervenção mais contundente, mas esse papel foi em tempos desempenhado pelo rock. Mas algo mudou, segundo António Corte-Real, guitarrista dos UHF (filho de António Manuel Ribeiro) e hoje à frente dos Revolta, um grupo surgido precisamente com o propósito de cantar contra a apatia.
“As bandas rock que sobreviveram, salvo raras excepções, viraram-se para a melodia fácil (para passar na rádio) e para as letras de amor. O intervencionismo perdeu-se”, lamentou.
Para o músico, o exemplo maior de José Afonso reside no facto de “nunca se ter calado, de ter sido sempre interventivo”. “E hoje”, acrescentou, “há necessidade de um outro intervencionismo. Há liberdade mas não se fala. As pessoas acomodaram-se aos 60 canais de TV, à internet... são utensílios importantes sim senhor, mas não nos podem tapar a visão”, concluiu.
MORTE POR ESCLEROSE
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987 (aos 57 anos), no Hospital de Setúbal, vítima de esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa do sistema nervoso que se caracteriza por progressiva fraqueza e atrofia muscular.
No seu último álbum, ‘Galinhas do Mato’, de 1985, o cantor já não conseguiu cantar a totalidade das canções por ter perdido o controlo da musculatura da língua.
MUNDO SECRETO
São a mais recente formação hip-hop a ‘estoirar’ em Portugal e o homónimo álbum de estreia – lançado este mês – está recheado de canções com mensagens positivas. Desde ‘Essência (‘A Liberdade’) até ‘Pousa a Tua Gun’, passando por ‘Dias de Mudança’. Mas é ‘GerAcção’ quem melhor sintetiza o privilégio da mensagem sobre a rima.
'GERACÇÃO'
“Em 1974 gritou-se liberdade! Dez anos depois, a minha geração nasce. Nós somos os filhos da revolução, daqueles que sonharam a liberdade de expressão. A nossa luta continua, começa pela base (...)
Em jeito de resumo, Tu podes escolher se és um puto que vê, ou faz a cena acontecer. A revolução está aí! A juventude não pára, e é mais forte que uma t-shirt estampada do Che Guevara (...) Meu irmão, tu és o futuro na nação, então grita acção! GerAcção!’”
BOSS AC
A denúncia de situações como o racismo sempre fizeram parte do vocabulário de Boss AC. Mas é em ‘Farto de ...’ (‘Ritmo, Amor e Palavras’) que o rapper se mostra mais contundente.
'FARTO DE...'
“Farto de ser o culpado sem ter culpa de nada, Ser rejeitado farto de conversa fiada, Farto deste sistema de mer** que nos engole, Farto destes políticos a coçar colh*** ao sol, Farto de promessas da treta; Sobem ao poder metem as promessas na gaveta, Farto de ver o país parado como uma lesma, Ver as moscas mudarem e a mer** ser a mesma, farto de os ver saltar quando os barcos naufragam, Quanto mais tiverem melhor, menos impostos pagam...”
SAM THE KID
Por sugestão do pai, Sam the Kid investiu finalmente no tema da política. ‘Abstenção’ é o tema em causa e surge incluído em ‘Pratica(Mente)’, o mais recente álbum de rimas do músico-poeta. Mas há mais: ‘Negociantes’ é outro dos retratos, sem papas na língua, da realidade contemporânea urbana portuguesa.
'ABSTENÇÃO'
“Não sou licenciado nem recenseado, com paciência, há-de aparecer alguém credenciado, com moral/ Que me faça votar, me faça lutar, me faça notar, e faça esgotar a campanha eleitoral (...) Eu não voto, eu boicoto, mas crio as horas nocturnas, sei qu’é o meu futuro, mas não vou acordar cedo/Pa pôr um voto nulo ao eleger um chulo ou um cherne, ou quem governe só com charme (...) Eu não preciso de reflexão eu já, tou decidido, eu só voto na verdade e não a vejo em nenhum partido...”
REVOLTA
Com António Corte-Real (UHF) à frente, os Revolta apostam no punk-rock para agitar consciências. “Politicamente incorrecto” o trio faz questão de gritar bem alto os problemas dos portugueses. ‘Ninguém Manda em Ti!!!’, é o título do álbum de estreia a editar em breve e o alinhamento inclui temas como ‘Bush’ e ‘Eu Quero Ser’.
'NINGUÉM MANDA EM TI'
“Nesta vida nada é fácil, Tudo custa mais do que devia, Ser banal ter lucro fácil, Queres viver outro dia – É proibido ter ideias, Pensar e falar, Se queres ser alguém, Tens de fingir e aguentar – Ninguém manda em ti, Mesmo que queira, Fecha os olhos e sorri. A vida inteira, A chuva miudinha Não pára de molhar, Os olhares curiosos, Que te estão a chatear É um ciclo vicioso Que te está a seguir, Só acabará no dia, Em que souberes resistir Ninguém manda em ti, Mesmo que queira, Fecha os olhos e sorri, A vida inteira
DR. SALAZAR
Mais de 30 anos depois do 25 de Abril, os Dr. Salazar sofrem na pele a discriminação pelo nome escolhido. O álbum de estreia, ‘Antes & Depois’ foi editado a expensas próprias e o metal industrial que praticam é também um veículo de crítica social, como o denuncia o tema ‘Falar do Mendigo’. Ao vivo, curiosamente, tocam uma versão de ‘Vejam Bem’ de José Afonso.
'FALAR DO MENDIGO'
“Perguntem ao mendigo, Que sobe a calçada, Rumo à sopa dos pobres, Se viu passar a democracia; Perguntem a quem pede, se deixou de pedir, E a todos que lutam, se param de lutar (...) (...) Mas só há lugar inquérito pelo telefone, e a matéria é do tipo Qual a figura mais In (...) (...) Adormece por fim no conforto do leito sujo, feito de trapos e pedaços de cartão, perfumado de vinho reles, enquanto a humidade da noite, Se abate no silêncio cortada apenas pelo latido do cão.”
in CORREIO DA MANHÃ 2007.02.23
As mais notadas diferenças residem nos propósitos (hoje mais sociais do que políticos) e na linguagem, como reconheceu Sam the Kid, salientando, porém, que “os tempos eram outros”.
“Naquela altura, antes do 25 de Abril, os músicos eram pessoas mais intelectualizadas e a linguagem das suas canções era muito mais elaborada do que é hoje. E acho que isso não se devia só à censura. O ‘Vampiros’ é um caso evidente, mas há outras letras cujas metáforas não apanho...”, acrescentou.
Para o músico, que confessa ter alguns discos de José Afonso (‘Cantigas do Maio’, ‘Vampiros’, ‘Com as Minhas Tamanquinhas’), “a linguagem do hip--hop é mais directa, usa a linguagem da rua, o calão... O próprio Vitorino, que passou por esses tempos, já me disse isso”, frisou.
Destacando a “postura simples, humilde e de pessoa do povo” de José Afonso, Sam the Kid estreou-se com canções de intervenção em ‘Pratica(Mente)’, recentemente editado.
“Tenho o ‘Abstenção’, que é uma canção em que mostro a minha indiferença pela política, mas a verdade é que represento muitos jovens que não se sentem identificados com os políticos que temos. Mas a canção tem uma mensagem de esperança”, disse. Outro dos temas de intervenção é “o ‘Negociantes’, em que abordo a realidade desde que o euro apareceu. As pessoas hoje têm de ter outra actividade porque só o emprego não dá para viverem condignamente. Pelo meio meto a visão de um ex-presidiário, que não consegue arranjar emprego, falo dos políticos e questiono para onde vai o dinheiro da retenção na fonte”, confessou, antes de frisar que “há que valorizar o hip-hop enquanto música e não apenas a mensagem”.
A influência de José Afonso é também referida pelos Mundo Secreto, uma jovem formação hip-hop. Francisco um dos membros do grupo, cresceu “a ouvir os discos dele [Zeca Afonso] e não só”, disse, destacando o carácter “positivo” da mensagem das canções de José Afonso.
ROCK AMOLECEU
O hip-hop é hoje a canção de intervenção mais contundente, mas esse papel foi em tempos desempenhado pelo rock. Mas algo mudou, segundo António Corte-Real, guitarrista dos UHF (filho de António Manuel Ribeiro) e hoje à frente dos Revolta, um grupo surgido precisamente com o propósito de cantar contra a apatia.
“As bandas rock que sobreviveram, salvo raras excepções, viraram-se para a melodia fácil (para passar na rádio) e para as letras de amor. O intervencionismo perdeu-se”, lamentou.
Para o músico, o exemplo maior de José Afonso reside no facto de “nunca se ter calado, de ter sido sempre interventivo”. “E hoje”, acrescentou, “há necessidade de um outro intervencionismo. Há liberdade mas não se fala. As pessoas acomodaram-se aos 60 canais de TV, à internet... são utensílios importantes sim senhor, mas não nos podem tapar a visão”, concluiu.
MORTE POR ESCLEROSE
José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987 (aos 57 anos), no Hospital de Setúbal, vítima de esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa do sistema nervoso que se caracteriza por progressiva fraqueza e atrofia muscular.
No seu último álbum, ‘Galinhas do Mato’, de 1985, o cantor já não conseguiu cantar a totalidade das canções por ter perdido o controlo da musculatura da língua.
MUNDO SECRETO
São a mais recente formação hip-hop a ‘estoirar’ em Portugal e o homónimo álbum de estreia – lançado este mês – está recheado de canções com mensagens positivas. Desde ‘Essência (‘A Liberdade’) até ‘Pousa a Tua Gun’, passando por ‘Dias de Mudança’. Mas é ‘GerAcção’ quem melhor sintetiza o privilégio da mensagem sobre a rima.
'GERACÇÃO'
“Em 1974 gritou-se liberdade! Dez anos depois, a minha geração nasce. Nós somos os filhos da revolução, daqueles que sonharam a liberdade de expressão. A nossa luta continua, começa pela base (...)
Em jeito de resumo, Tu podes escolher se és um puto que vê, ou faz a cena acontecer. A revolução está aí! A juventude não pára, e é mais forte que uma t-shirt estampada do Che Guevara (...) Meu irmão, tu és o futuro na nação, então grita acção! GerAcção!’”
BOSS AC
A denúncia de situações como o racismo sempre fizeram parte do vocabulário de Boss AC. Mas é em ‘Farto de ...’ (‘Ritmo, Amor e Palavras’) que o rapper se mostra mais contundente.
'FARTO DE...'
“Farto de ser o culpado sem ter culpa de nada, Ser rejeitado farto de conversa fiada, Farto deste sistema de mer** que nos engole, Farto destes políticos a coçar colh*** ao sol, Farto de promessas da treta; Sobem ao poder metem as promessas na gaveta, Farto de ver o país parado como uma lesma, Ver as moscas mudarem e a mer** ser a mesma, farto de os ver saltar quando os barcos naufragam, Quanto mais tiverem melhor, menos impostos pagam...”
SAM THE KID
Por sugestão do pai, Sam the Kid investiu finalmente no tema da política. ‘Abstenção’ é o tema em causa e surge incluído em ‘Pratica(Mente)’, o mais recente álbum de rimas do músico-poeta. Mas há mais: ‘Negociantes’ é outro dos retratos, sem papas na língua, da realidade contemporânea urbana portuguesa.
'ABSTENÇÃO'
“Não sou licenciado nem recenseado, com paciência, há-de aparecer alguém credenciado, com moral/ Que me faça votar, me faça lutar, me faça notar, e faça esgotar a campanha eleitoral (...) Eu não voto, eu boicoto, mas crio as horas nocturnas, sei qu’é o meu futuro, mas não vou acordar cedo/Pa pôr um voto nulo ao eleger um chulo ou um cherne, ou quem governe só com charme (...) Eu não preciso de reflexão eu já, tou decidido, eu só voto na verdade e não a vejo em nenhum partido...”
REVOLTA
Com António Corte-Real (UHF) à frente, os Revolta apostam no punk-rock para agitar consciências. “Politicamente incorrecto” o trio faz questão de gritar bem alto os problemas dos portugueses. ‘Ninguém Manda em Ti!!!’, é o título do álbum de estreia a editar em breve e o alinhamento inclui temas como ‘Bush’ e ‘Eu Quero Ser’.
'NINGUÉM MANDA EM TI'
“Nesta vida nada é fácil, Tudo custa mais do que devia, Ser banal ter lucro fácil, Queres viver outro dia – É proibido ter ideias, Pensar e falar, Se queres ser alguém, Tens de fingir e aguentar – Ninguém manda em ti, Mesmo que queira, Fecha os olhos e sorri. A vida inteira, A chuva miudinha Não pára de molhar, Os olhares curiosos, Que te estão a chatear É um ciclo vicioso Que te está a seguir, Só acabará no dia, Em que souberes resistir Ninguém manda em ti, Mesmo que queira, Fecha os olhos e sorri, A vida inteira
DR. SALAZAR
Mais de 30 anos depois do 25 de Abril, os Dr. Salazar sofrem na pele a discriminação pelo nome escolhido. O álbum de estreia, ‘Antes & Depois’ foi editado a expensas próprias e o metal industrial que praticam é também um veículo de crítica social, como o denuncia o tema ‘Falar do Mendigo’. Ao vivo, curiosamente, tocam uma versão de ‘Vejam Bem’ de José Afonso.
'FALAR DO MENDIGO'
“Perguntem ao mendigo, Que sobe a calçada, Rumo à sopa dos pobres, Se viu passar a democracia; Perguntem a quem pede, se deixou de pedir, E a todos que lutam, se param de lutar (...) (...) Mas só há lugar inquérito pelo telefone, e a matéria é do tipo Qual a figura mais In (...) (...) Adormece por fim no conforto do leito sujo, feito de trapos e pedaços de cartão, perfumado de vinho reles, enquanto a humidade da noite, Se abate no silêncio cortada apenas pelo latido do cão.”
in CORREIO DA MANHÃ 2007.02.23
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