Campo de Concentração do Tarrafal: a verdade dos factos
* José Tavares | Historiador: |
Outubro 29, 2006 | In Política |
Entra o século XX e encontra a relação entre os países em ebulição. A Europa está a passar por um momento de convulsão política. O desentendimento tem o desfecho trágico: um primeiro ensaio bélico à escala planetária que dura cinco anos (1914-1919) e arrasta consigo cerca de 40 milhões de vidas. O fim da Grande Guerra não significa o fim das hostilidades. Os conflitos não têm unicamente a dimensão internacional. Alguns países atravessam momentos de verdadeira “hemorragia interna”, a nível político, com várias facções ideológicas a disputar o poder.
Portugal não foge à regra. O “Reviralho” (esquerda republicana) separa-se da Ditadura, desde a primeira hora, e combate-a ferozmente; o Movimento Operário Organizado através do Anarco-Sindicalismo testa a sua força hegemónica no seio da classe operária; o Partido Comunista Português, com fraca influência, tenta fazer ecoar a sua voz; e, por fim, o Partido Socialista adopta uma posição ambígua em relação à Ditadura. As cartas estão lançadas e os “jogadores” delineiam estratégias. A História segue o seu curso natural e o processo de transição para o Estado Novo causa várias “baixas” entre as forças que disputam a hegemonia a partir do interior da Ditadura. O Salazarismo, enquanto Regime Político, emerge como vencedor. As hostilidades continuam. O Reviralhismo e o Movimento Operário declaram guerra à derrota, não aceitando o triunfo do Salazarismo. O clima é de grande tensão. As desconfianças são mútuas. Salazar precisa de manter o regime. Aposta fortemente nos instrumentos de repressão e instala o Estado Novo. A Polícia Política, o sistema de saneamento e o sistema prisional são apenas alguns exemplos. E, de repente, surge um milagre; uma espécie de “mão invisível” que convida todos os “irrequietos” ao “culto do silêncio”. Parece o fim da linha. O silêncio é profundo. Ensurdecedor, até.
Um novo dia: 29 de Outubro de 1936. O Campo de Concentração do Tarrafal abre as portas e acolhe “amavelmente” os primeiros “hóspedes”. É o Decreto-Lei número 26: 539 de 23 de Abril de 1936, que surgiu no âmbito da reorganização dos serviços prisionais, que passa o certidão de nascimento à “Colónia Penal”. Não se trata de uma prisão qualquer. É um verdadeiro Campo de Concentração, construído com o objectivo de (des)“amparar” os indivíduos sobre os quais recaem “penas especiais”, tendo em conta o teor do Decreto-Lei número 26:643 de 28 de Maio de 1936, que reorganiza os estabelecimentos Prisionais. Os parágrafos 1 e 2 do artigo 2 do Decreto Lei 26:539 de 23 de Abril de 1936 não nos enganam. Dizem-nos que a “Colónia da Morte” serve para receber os presos políticos e sociais, sobre quem recai o dever de cumprir o desterro, aqueles que internados em outros estabelecimentos prisionais se mostram refractários à disciplina e ainda os elementos perniciosos para outros reclusos. Também o documento abrange os condenados a pena maior por crimes praticados com fins políticos, os presos preventivos, e, por fim, os presos por crime de rebelião.
Campos de Concentração antes do Tarrafal
Tarrafal não é a causa, mas sim a consequência. É o resultado da agudização da luta de classes em Portugal, que leva o regime salazarista, encorajado pela situação política na Alemanha e na Itália, a incrementar a repressão. Por isso, a história da “Colónia Penal de Tarrafal” começa verdadeiramente depois de 18 de Janeiro de 1934. Antes do Tarrafal, o regime opressor criara, na Ilha de São Nicolau, um Campo de Concentração que servira para o degredo, maioritariamente, dos oficiais do exército detidos na Revolução da Madeira de 1931. E anterior ainda às prisões de Cabo Verde, o Decreto-Lei de 17 de Fevereiro de 1907, havia criado, em Angola, uma Colónia Penal Militar. Contudo, o Campo de Concentração da Ilha de S. Nicolau e os campos de concentração alemães, principalmente o de Dachau, são apresentados por muitos, especialmente pelos presos que estiveram no Tarrafal, como os antecedentes que justificam a criação daquilo que uns designam de Colónia Penal e outros de Campo de Concentração de Tarrafal. O nome pouco importa. Interessa, sim, as finalidades, os objectivos. O fim.
O Governo salazarista e os seus apologistas defendem apenas que o Campo de Concentração do Tarrafal é arquitectado como “Colónia Penal” e que tem como fim primordial a recolha dos condenados a pena de desterro pela prática de crimes políticos e os prisioneiros de delitos comuns que, na Metrópole, mostram-se intransigentes à disciplina prisional. O Governo justifica ainda que a Colónia Penal do Tarrafal é, em tudo, semelhante às prisões da Metrópole, dirigidas pelo Ministério da Justiça, como os casos de Caxias, Aljube, Peniche.
Tarrafal e a Construção da Morte
O Decreto-Lei que dá “vida” ao “Campo da Morte” determina a instalação do estabelecimento prisional na zona de Achada Grande e Ponta de Achada de Chão Bom, no Concelho de Tarrafal, a norte da Ilha de Santiago (Cabo Verde). A construção do Campo é entregue ao Ministério das Obras Públicas e Telecomunicações, com responsabilidades para elaborar a planta e levar a cabo a construção da obra. O Ministério das Obras Públicas e Telecomunicações elabora, assim, uma planta constituída por diferentes pavilhões para a instalação dos serviços e o agrupamento dos presos, de acordo com as suas afinidades políticas. O projecto está pronto, mas tem que ser aprovado. Têm responsabilidades na aprovação, o Ministério das Obras Públicas e Telecomunicações, o Ministério da Justiça e a Comissão das Construções Prisionais. O Ministério da Guerra, da Marinha e da Colónia também pode garantir um apoio essencial para a instalação e funcionamento dessa prisão. O projecto apresenta uma cadeia de 1.700 hectares, ampliáveis, caso justificar.
A Instalação do Campo da Morte
A instalação da “Colónia Penal” obedece a duas etapas: a primeira correspondente ao período que vai de 1936 até 1938. Durante este período, o Campo de Concentração do Tarrafal recebe os primeiros 150 presos antifascistas de diversas profissões: camponeses, operários, soldados, marinheiros das revoltas dos navios Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque, estudantes, intelectuais, entre outros. A segunda fase compreende a época da construção dos primeiros pavilhões de pedras e a chegada do médico Esmeraldo Pais de Prata, até ao encerramento que acontece em 1954.
Os primeiros presos instalam-se em tendas de lona, sem as mínimas condições de habitabilidade e de higiene. As barracas não têm luz eléctrica, nem ventilação, nem qualquer protecção contra a chuva e o sol. São doze barracas de lona, com sete metros de comprimento e quatro de largura. Cada uma tem capacidade para alojar doze prisioneiros. O prazo de validade destas barracas é de dois anos, altura em que surgem os pavilhões feitos de pedras. O espaço envolvente à “Colónia Penal” é vedado com arame farpado em toda a sua volta, para impedir qualquer contacto com o exterior. O único edifício de pedra na primeira fase é a cozinha que, entretanto, não fica completamente construído.
A Morte Lenta no Campo de Tarrafal
Os compartimentos da “Colónia Penal” estão longe de obedecer um parâmetro mínimo de humanidade. Depois de 16 anos na “jaula prisional”, João Faria Borda testemunha que “o Campo de Concentração é um rectângulo (cerca de 250m por 180) situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como alojamento, existem umas barracas de lona onde são metidos cerca de 12 presos em cada uma”. A par da falta de condições das instalações, existe também o castigo da Frigideira, uma pequena construção completamente fechada cujas paredes, chão e tecto são constituídos por cimento, que é a pior “dor de cabeça” para qualquer preso. A Frigideira é uma espécie de purgatório. É um antro de cimento onde as almas ‘pecaminosas’ são levadas a “purificar”. Só que muitas delas nunca mais voltam ao “paraíso terrestre de Salazar”.
Com as dimensões de 0.60m por 1.70m de altura, o portão de ferro da Frigideira parece com as portas dos navios. As celas são separadas por portões de ferro semelhantes. O equipamento é construído a uma distância considerável de qualquer outro compartimento da “casa da morte”, para que a sombra não proteja os seus habitantes do calor infernal que lá se faz, ficando permanentemente exposto ao raio solar durante o período diurno. No seu interior, só há dois companheiros: a solidão e o silêncio. Dias e noites a fios, os homens que lá estão apenas “falam” que a chuva que cai, apreciando o som da água que corre da Ribeira Prata para ir alagar os terrenos de Colonato. “Em Cabo Verde, região de clima variável, calha chover bastante nestes anos. A lona das barracas apodrece de tal maneira que lá dentro chove como na rua e de manhã acordamos com a cara negra da poeira que se pega à humidade que sobre nós cai. As águas acumuladas formam pântanos onde se desenvolvem mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos, arruína-se”. Desabafo de quem, durante 16 anos, dormiu na mesma cama que a morte, abraçado por ‘putríficas’ condições higiénicas.
Por outro lado, o quotidiano dos reclusos no Tarrafal é pautado principalmente pelos trabalhos forçados, pelas provocações e castigos de diversa ordem. O contacto com o exterior é escasso, sendo-lhes proibida, frequentemente, a troca de correspondência com os amigos e os familiares. E assim reza a história. Triste história de uma passado que teima em ficar. Os anos passam mas a verdade fica. A verdade da História.
Era um dia como hoje: 29 de Outubro de 1936. O Campo de Concentração do Tarrafal abre as portas. E hoje, um dia como aquele: 29 de Outubro de 2006, a história teima em trazer a verdade. A verdade dos factos. Tarrafal… há 70 anos, abre a porta da morte. E é atravessado por Esmeraldo Pais de Prata, médico Licenciado em “Assassínio”. Chega, entra e diz a sua primeira frase: “não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”.
* Nota: Esta reportagem foi feita por dois tarrafalenses que amam Tarrafal. A base Científica em que se apoiou foi a tese de Mestrado de José Soares, intitulado: O Campo de Concentração de Tarrafal (1936-1954): A Origem e o Quotidiano. A redacção esteve a cargo do jornalista Silvino Évora, Mestre em Ciências da Comunicação. Em homenagem aos que travaram a Ditadura com o sofrimento, os autores quiseram recordar os 70 anos do “Campo da Morte”.
in http://nosmedia.wordpress.com/2006/10/29/campo-de-concentracao-do-tarrafal-a-verdade-dos-factos/
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