No passado dia 2 [Fevereiro 2004], faleceu com 89 anos de idade, o general Kaúlza de Arriaga.
* José Pedro Castanheira
No jornal Expresso de ontem, em particular na revista "Única", sai publicado um texto da autoria de José Pedro Castanheira, cujo conteúdo apresenta uma síntese do percurso e ideias do general.
Regista o autor que "Kaúlza de Arriaga foi comandante militar em Moçambique, defendeu teses racistas e quis derrubar Marcelo Caetano, que via como "traidor".
É, pois esse texto, que neste post editamos.
O GENERAL SEM VITÓRIAS
"Faleceu do dia 2, com 89 anos de idade, o general Kaúlza de Arriaga. O seu nome fica associado ao massacre de Wiriamu, ocorrido em 16 de Dezembro de 1972, quando era comandante-chefe das Forças Armadas de Moçambique. Considerado o maior crime de guerra cometido nas antigas colónias, Wiriamu foi denunciado pelo jornal "Times", na véspera da visita de Marcelo Caetano a Londres. Ainda hoje se ignora o número de vítimas civis, causadas pela 6ª Companhia de Comandos. Um relatório da Cruz Vermelha calculou-as em cerca de centena e meia. Os três inquéritos instaurados pelas autoridades portuguesas concluíram por números muitíssimos inferiores. Mas uma investigação feita pelo EXPRESSO, em 1992, apontou para quatro centenas. No rescaldo de Wiriamu, Caetano perdeu a confiança em Kaúlza, que, assim, terminou a sua carreira.
Kaúlza Oliveira de Arriaga nasceu no porto em 18 de Janeiro de 1915. O ex-Presidente Costa Gomes lembra, em O Último Marechal: "Foi aluno distintíssimo na Faculdade de Ciências do Porto e na Escola de Engenharia do Exército". Ainda no Porto, "teve uma grande paixão" pela poetisa Sofia de Mello Breyner.
Ajudante e chefe de gabinete do ministro da Defesa Nacional, Santos Costa, foi nomeado, em 1955, subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo fundado o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas. Já secretário de Estado, foi autor, em 1960, de um relatório premonitório. Em Alvorada em Abril, Otelo Saraiva de Carvalho regista que o documento alertava para o risco que a "proletarização das Forças Armadas" poderia constituir para o regime, quando os jovens cadetes, oriundos das classes sociais baixas, chegassem a oficiais.
Em 1961, registou aquela que terá sido a sua principal vitória política. Na sua página na Internet (www.cidadevirtual.pt/k-arriaga) lê-se que "contribuiu decisivamente para fazer abortar um golpe de Estado contra o Presidente Salazar e contra o Ultramar português". Foi a "Abrilada", de que resultou a destituição do ministro da Defesa, Botelho Moniz, e do subsecretário de Estado do Exército, Costa Gomes. Seguiu-se uma remodelação governamental, com Salazar a assumir a Defesa e a dirigir um célebre discurso ao país: "Para Angola, rapidamente e em força".
OPERAÇÃO NÓ GÓRDIO
Encerrada, para seu desgosto, a experiência governativa, foi colocado como professor no Instituto de Altos Estudos Militares (1964/1968). O tomo Problemas Estratégicos Portugueses (um dos 12 livros que escreveu) reúne algumas das suas lições, em que se distinguiu como teórico do racismo branco: "Nós não seremos capazes de manter a dominação branca, que constitui um objectivo nacional, a não ser que o povoamento branco se efectue a um ritmo que acompanhe e ultrapasse, mesmo que ligeiramente, a produção de negros evoluídos".
Presidente da Junta de Energia Nuclear e da emprensa de petróleos Angol, em Junho de 1969, foi colocado em Moçambique, onde, pela primeira e única vez, pôs à prova as suas qualidades e teorias de estratego militar- primeiro como comandante do Exército e, depois, como comandante-chefe das Forças Armadas. A sua acção foi marcada pela operação Nó Górdio.
Envolvendo um efectivo de oito mil homens foi a maior operação dos 13 anos de guerras coloniais. Até ao fim da vida, Kaúlza não se cansou de sublinhar que a operação "foi um sucesso". Vaidoso, chegou mesmo a apresentar-se (em Guerra e Política) como "o segundo melhor perito do mundo em guerra subversiva, logo a seguir a Giap- célebre chefe militar nas guerras da Indochina e do Vietnam". Ponto de vista diametralmente oposto foi sustentado quer por Costa Gomes, quer por Spínola. Para o historiador António Costa Pinto, em O Fim do Império Português, "a operação foi um falhanço, pois passados poucos meses a Frelimo recuperou o terreno perdido".
A Nó Górdio não satisfez Lisboa, que também considerou megalómana e perigosa a proposta de um mesmo comandante-chefe para Angola e Moçambique. Mas o que fez cair Kaúlza foi o escândalo Wiriamu. A 9 de Julho de 1973, Caetano escreveu-lhe a carta fatal: "Reconheço a vantagem, para si, para Moçambique, para todos nós, em outra pessoa rever os conceitos e as tácticas da acção anti-subversiva em Moçambique". Contrafeito, e sempre acompanhado da mulher, regressou à metrópole no mês seguinte. Na sua página na Internet lê-se que "a partir do final do ano de 1973, deixou de crer nas possibilidades em decréscimo do Presidente Caetano, procurando a sua substituição". Com efeito, Kaúlza passou a liderar o que António de Spínola designa (em País sem Rumo) "a revolta dos generais", em ruptura à direita com a política de Caetano.
Posto ao corrente dos planos da extrema-direita militar, os capitães decidiram infiltrar-se. José Manuel Barroso, em Segredos de Abril, refere que Sousa e Castro foi um dos "espiões do MFA". "Reunimo-nos na Pousada de São Filipe, em Setúbal, nos finais de 1973. Explicam-nos que o golpe já tem data marcada, no mês de Dezembro". A 17 de Dezembro, Carlos Fabião denunciou publicamente o golpe de Estado em preparação. Fabião foi punido pela hierarquia militar, mas o golpe foi travado.
ASSÉDIO AO PRESIDENTE
Kaúlza, no entanto, não era homem para desistir e passou a assediar o próprio Presidente da República, Américo Thomaz, com a cumplicidade do cunhado, general Luz Cunha, novo chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Nas suas memórias, Últimas Décadas de Portugal, Thomaz transcreve uma última carta de Kaúlza, exortando-o a que tomasse "em tempo útil, as grandes medidas" capazes de "sustar a evolução no sentido do abismo". Certamente informado do golpe em curso, Kaúlza fazia notar que "os prazos de acção são curtos".
Hesitante e sem poder, Thomaz nada fez. A 25 de Abril de 1974, os capitães puseram termo à ditadura. Três semanas depois, Kaúlza foi passado à reserva. Acabou por ser preso na crise do 28 Setembro, ficando detido 16 meses. Sem culpa formada, foi libertado incondicionalmente em Janeiro de 1976 e processou o Estado português. Em 1977, lançou o Movimento para a Independência e Reconstrução Nacional (MIRN), uma pequeníssima formação de extrema-direita, a que presidiu.
O processo judicial arrastou-se durante mais de dez anos e subiu ao Supremo Tribunal Administrativo, que em 1987 reconheceu a razão do general. O Estado foi condenado a uma indeminização de 100 contos e um escudo. O respectivo acórdão inclui um invulgar juízo político: "O general Kaúlza de Arriaga tinha, realmente, capacidade, vontade e prestígio para liderar um movimento que impedisse a descolonização de Angola e Moçambique".
Vítima de doença de Alzheimer, Kaúlza de Arriaga morreu no Hospital militar da Estrela. O funeral foi no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa".
retirado do blog Ciência e História (Sandra Cristina Almeida)
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