* João Aguiar
O 25 de Abril de 1974
O 25 de Abril (e toda dinâmica popular e revolucionária subsequente) é naturalmente o acontecimento maior da História portuguesa contemporânea. Iniciado como um golpe de oficiais democratas e progressistas contra o regime, logo na manhã de 25 de Abril o golpe se transforma em revolução. Pela participação criativa, alegre e activa das massas populares no processo revolucionário e democrático. Pelas transformações avançadas que o povo português almejou construir. O 25 de Abril também foi uma revolução porque teve como um actor político de primeira importância o PCP, que em conjunto com os trabalhadores portugueses e o MFA, foram a principal força motora da revolução portuguesa.Uma revolução que foi de encontro às teses que o camarada Álvaro Cunhal muito correctamente definiu anteriormente da revolução antifascista como democrática e nacional. Nas suas palavras, «é democrática porque acabará com a tirania fascista, instaurará a liberdade política, porá termo ao domínio da oligarquia financeira, defenderá os interesses populares, realizará uma série de reformas que beneficiarão a maioria esmagadora da população portuguesa». E é nacional «porque, acabando com o domínio imperialista sobre Portugal e o domínio colonialista de Portugal sobre outros povos, assegurará a soberania, a integridade territorial e a verdadeira independência do país» (Cunhal, 1994, p.25). Tais objectivos colocados ao povo e aos trabalhadores portugueses correspondiam, por um lado, às aspirações das mais amplas massas, suas expectativas num Portugal democrático, livre, soberano e onde a justiça social não fosse uma frase vazia. Por outro lado, uma revolução democrática e nacional era o horizonte colocado aos trabalhadores portugueses, dada a correlação de forças nacional e internacional.De forma muito sumária, podem-se enumerar as principais conquistas da Revolução de Abril. Recorri por isso a duas obras essenciais de Álvaro Cunhal (A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro; A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril) para dar conta do que de mais libertador foi conseguido com a Revolução de 74/75: 1) a conquista das liberdades (liberdade de reunião e manifestação; liberdade dos partidos políticos; liberdade sindical; conquista do direito de greve; a liberdade de imprensa); 2) o melhoramento das condições de vida da classe operária e do povo (o estabelecimento do salário mínimo, dos subsídios de férias, alimentação, pensões de invalidez, de desemprego, etc.); 3) o controlo operário e a gestão dos trabalhadores em fábricas alvo de sabotagem do patronato; 4) as nacionalizações (da banca, estaleiros, recursos energéticos, luz, transportes, companhias de cimentos, petroquímicas, etc.); 5) a Reforma Agrária (com a constituição de mais de 400 UCP’s e cooperativas e com o emprego de dezenas de milhares de trabalhadores, com óbvios efeitos no aumento da área cultivada e da produção e na queda acentuada do desemprego na região); 6) o processo de descolonização e o fim da guerra colonial; 7) a existência de uma política de independência nacional (algo de inédito em centenas de anos da História portuguesa, na medida em que a submissão e vassalagem aos ditames de potências imperialistas estrangeiras foi interrompida, sendo hoje reatada descaradamente pelos governos PS e PSD); a consagração de importantes direitos sociais, económicos e culturais das massas (ao nível da educação, saúde, habitação, segurança social, acesso à justiça, etc.).Do outro lado da barricada contra Abril tínhamos (e temos) o grande capital. É certo que a burguesia – nomeadamente o grande capital financeiro e industrial – tinha sofrido um duro golpe com a Revolução de Abril. Os grandes grupos monopolistas – Champalimaud, os Mello, os Espírito Santo, etc. – viram o seu poder económico ser subtraído. Contudo uma classe dominante nunca desaprende a dominação de classe de um dia para o outro e muito menos se habitua a uma nova condição que não seja a de domínio e hegemonia. À sua experiência de décadas e décadas de domínio político e económico da sociedade portuguesa, há que não esquecer as ferramentas que a classe dominante tem sempre ao seu alcance. Nesse sentido, perdido o poder de Estado com o derrube do fascismo tal não significa nunca que a burguesia não continue a dispor de armas políticas (e militares). A burguesia nunca está na luta de classes só com um único instrumento mas tem sempre um naipe de cartas que pode ir utilizando à medida em que decorre o processo político. Portanto, perdido um dos ases do baralho – o Estado fascista –, restavam ainda outros trunfos na manga. A burguesia soube jogar sabiamente um deles: o Partido Socialista sob comando de Mário Soares. O facto de ter sido o PS e seu líder de então a funcionarem como os principais pivots da luta contra o processo revolucionário não tem que ver apenas com traição de princípios, oportunismo político e uma estatura moral repugnante. Isso é certamente verdade mas não é suficiente para caracterizar o comportamento do PS nessa época. Com efeito, a primeira carta jogada pela burguesia logo a seguir à revolução foi um rotundo fracasso. Spínola e suas aventuras militares e conspirativas de recorte fascista foram inequivocamente derrotadas pelas massas populares no 28 de Setembro de 74. Voltaria a lançar nova aventura no 11 de Março de 75 mas desta vez era muito mais um peão, um joguete nas mãos do verdadeiro jogador da contra-revolução: o PS. Este partido era então o único capaz de unificar a burguesia e destroçar a luta do proletariado. Esgotada temporariamente a possibilidade de contra-golpes militares contra o regime democrático de Abril, o PS vai então surgir como a ponta-de-lança da contra-ofensiva do capital contra o movimento povo-MFA e os governos de Vasco Gonçalves. Não que o PS pretendesse voltar ao fascismo – como acontecia com Spínola – mas o PS através de múltiplos malabarismos e jogos de cintura conseguiu arrastar para o seu lado camadas da classe trabalhadora que não tinham ainda conseguido transformar a sua consciência política antifascista e democrática em voto e apoio político efectivo ao PCP por uma variada ordem de razões. O preconceito anti-comunista e anti-soviético herdado do fascismo não pode ser desprezado. Como a manipulação que o PS fez das aspirações populares de justiça social e aprofundamento da democracia política e económica não pode igualmente ser rejeitada na forma como o PS se tornou no partido mais votado nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1975. A ilusão inculcada em massas menos avançadas – mas comprometidas genuinamente com Abril – de que o PS seria o real defensor de um “socialismo democrático” (como se fosse possível um socialismo ditatorial!) contribuiu igualmente para ganhar o apoio dessas massas, bem como do apoio da pequena-burguesia urbana (a pequena-burguesia rural e o campesinato nortenhos foram sobretudo captados pelo PSD e pelo CDS).Todavia, o grande capital não derrotou o processo democrático e revolucionário de 74/75 apenas com uma carta. Da sua manga, a burguesia “sacou” ainda o PSD, o CDS, os sectores militares reaccionários (que no 25 de Novembro iriam defender um banho de sangue sobre os comunistas), o terrorismo bombista do MDLP e do ELP, o esquerdismo (o MRPP, a AOC, a OCMLP, etc.) e o apoio internacional da CIA, da NATO, da CE e do próprio Franco.
Não obstante a amplitude de recursos e a força da reacção, é indesmentível que o impacto das conquistas de Abril foi tal que ainda hoje passados 33 anos o património da Revolução ainda não foi completamente destruído. Apesar da descaracterização do regime político democrático, da deterioração das condições de vida e de trabalho do povo português, dos atentados à soberania nacional, da destruição paulatina da escola, da saúde e da segurança social públicas, a riqueza civilizacional de Abril é medida também por estes termos. A sua importância foi tal, o sulco que inscreveu na sociedade portuguesa foi tão profundo que 30 anos de contra-revolução impiedosa de governos PS e PSD (com o beneplácito da UE) não conseguiram subverter Abril na sua totalidade.
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