DA HISTÓRIA DOS PRETOS E DE ALGUNS BRANCOS AMIGOS DE PRETOS
[campos de concentração na guerra colonial]
* João Tunes
A Portaria nº 18.539 de 17 de Junho de 1961, publicada em “Diário do Governo”, dizia apenas: “É instituído em Chão Bom um campo de trabalho”. Assinava, o então Ministro do Ultramar (hoje, eminência e referência em qualquer debate televisivo de “qualidade”), Dr. Adriano Moreira.
O que significou este despacho, com um tom inócuo de cumprimento de ritual administrativo? “Apenas” isto – a formalidade “administrativa” para que a PIDE reabrisse o Campo Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, agora destinado aos militantes anti-coloniais.
Em termos de repressão e sofrimentos humanos, o que representou, consumou, este “despacho” do tão respeitável e venerando homem de ideias e do pensamento luso Adriano Moreira?
O Campo de Concentração do Tarrafal, usado até final da Segunda Guerra contra “prisioneiros políticos portugueses-europeus”, tinha fechado para fazer esquecer a semelhança de métodos do católico-fascismo português com o nazi-fascismo. O Campo ficava na periferia do porto-praia de Tarrafal na ilha de Santiago em Cabo Verde (na ponta oposta à Cidade da Praia) (hoje, uma belíssima estância balnear).
Com o acentuar das ideias independentistas entre os povos coloniais, os prisioneiros às mãos da Pide começaram a ser muitos, demasiados. Na sua maioria, pretos. Ou seja, uma nova sub-classe, inferior, na escala dos “subversivos” perante o regime. Numa primeira fase, 1958-1961, ainda se simularam “julgamentos” que, nas colónias, foram atribuídas a Tribunais Militares. Os julgamentos, escandalosos na sonegação de direito de defesa, com “confissões” arrancadas sob torturas horrendas, aumentavam de caudal, transformando-se em enxurradas de condenados. O que fazia alastrar a indignação e ... a luta. Bem como o eco nacional e internacional. Para agravar, havia uns tantos brancos, além de mestiços, misturados na luta dos pretos antipatriotas (sim, nem todos os brancos luso-africanos foram colonos e colonialistas, honra lhes seja feita!). Passaram-se então a dividir os processos, de forma a que brancos e mestiços aparecessem nuns julgamentos e a pretalhada noutros. Depois, para complicar, havia presos carismáticos, cujo martírio da perseguição induzia vontades de lutar, casos de Agostinho Neto, Padre Joaquim Pinto de Andrade e outros. Então, a Pide passou a mandar para o Aljube e Caxias, os presos colonias de elite, deixando aos tribunais militares coloniais “julgarem” os de menor condição social ou ressonância social. Mesmo assim, estes presos-bandeira eram incómodos, então passou-se à deportação selectiva (Agostinho Neto para a Ilha de Santo Antão em Cabo Verde, Joaquim Pinto de Andrade para a Ilha do Príncipe). Não deu, estes homens encontravam sempre forma de defenderem as suas ideias.
Se os “julgamentos” eram muitos e os réus aumentavam exponencialmente, o que fazer? Apresentar a julgamento milhares de pretos subversivos, com uns brancos e mestiços desnaturados à mistura? Quando se dizia que pretos e brancos eram todos felizes, do Minho a Timor, por serem portugueses? A solução foi dispensarem-se as formalidades dos “julgamentos”. No fundo, se aquilo era uma grotesca encenação, porquê insistir nela com riscos de repercussões indesejáveis? A PIDE passou então a ter poder de aplicar “administrativamente” a “fixação de residência” que podia ter lugar em qualquer parte do espaço nacional. E a PIDE passou a “fixar residência” aos seus presos africanos, depois de interrogados e torturados, em ... qualquer uma das suas cadeias. Sem prazo nem outra formalidade que o despacho do Pide-Mor em cada colónia. Mas as prisões localizadas nas capitais coloniais não chegavam para as encomendas e havia o inconveniente de as famílias e amigos dos presos se amontoarem aos portões querendo saber dos seus. Havia, pois, que levar os presos para longe das vistas e dos corações.
Lembraram-se de Tarrafal, o Campo entretanto vazio de presos luso-europeus. O nome não convinha, lembrava a nazi-fascismo, mas as instalações ainda estavam boas para pretos e ainda mais para brancos amigos de pretos. Solução: o sítio do Campo foi rebaptizado como Chão Bom (o que devia espicaçar o sadismo dos pides). E, assim, Adriano Moreira, com o seu singelo despacho de 17 de Junho de 1961, oficializou a reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal sob a designação de “campo de trabalho de Chão Bom”. Agora para africanos com manias de independências ou disso suspeitos. Excelente para que os militantes anticoloniais ali penassem, sem julgamento, sem prazo, sem assistência, afastados das famílias e sem capacidade de exercerem más influências. Apenas por decisão administrativa da Pide e como “fixação de residência”.
Os presos aumentavam as levas para o Tarrafal / Chão Bom. Eram cada vez mais e havia os custos das viagens. Havia que poupar porque a guerra colonial dava uma despesa danada. E, nestas circunstâncias, a receita é descentralizar. É então a altura, em 24 de Agosto de 1961, de a mesma Excelência, o Ministro do Ultramar, Dr. Adriano Moreira, pela Portaria 18.702, despachar laconicamente: “É instituído na província de Angola o campo de trabalho de Missombo”.
As guerras coloniais alastravam, os prisioneiros aumentavam, onde se metiam os que não se liquidavam sumariamente? Tanto preto preso, onde metê-los? Continuar a abrir campos? Claro, mas sobrecarregar o Ministro com mais portarias e mais dicas da escalada repressiva expostas (mesmo que disfarçada de actos administrativos incolores)? Não há mal que não tenha cura. O campo de São Nicolau, em Angola, abriu e já não precisou de Portaria. O mesmo com os Campos abertos em série em Moçambique (para descongestionarem Machava). O mesmo com o campo nos Bijagós na Guiné.
Os dois despachos, aqui citados, de Adriano Moreira, do venerando e honorável Professor Adriano Moreira, ficam como peças burocráticas perdidas na história da transição da ignomínia para o genocídio. Mostrando que há “criminosos de guerra” com direito hoje, na democracia, a serem atentamente escutados como “opinion maker”. Os “campos” passaram á história. Foram coisa para pretos. E para brancos amigos de pretos. Que, sabe-se, estavam na escala mais baixa do bom português.
retirado do Blog Agualisa 4
O que significou este despacho, com um tom inócuo de cumprimento de ritual administrativo? “Apenas” isto – a formalidade “administrativa” para que a PIDE reabrisse o Campo Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, agora destinado aos militantes anti-coloniais.
Em termos de repressão e sofrimentos humanos, o que representou, consumou, este “despacho” do tão respeitável e venerando homem de ideias e do pensamento luso Adriano Moreira?
O Campo de Concentração do Tarrafal, usado até final da Segunda Guerra contra “prisioneiros políticos portugueses-europeus”, tinha fechado para fazer esquecer a semelhança de métodos do católico-fascismo português com o nazi-fascismo. O Campo ficava na periferia do porto-praia de Tarrafal na ilha de Santiago em Cabo Verde (na ponta oposta à Cidade da Praia) (hoje, uma belíssima estância balnear).
Com o acentuar das ideias independentistas entre os povos coloniais, os prisioneiros às mãos da Pide começaram a ser muitos, demasiados. Na sua maioria, pretos. Ou seja, uma nova sub-classe, inferior, na escala dos “subversivos” perante o regime. Numa primeira fase, 1958-1961, ainda se simularam “julgamentos” que, nas colónias, foram atribuídas a Tribunais Militares. Os julgamentos, escandalosos na sonegação de direito de defesa, com “confissões” arrancadas sob torturas horrendas, aumentavam de caudal, transformando-se em enxurradas de condenados. O que fazia alastrar a indignação e ... a luta. Bem como o eco nacional e internacional. Para agravar, havia uns tantos brancos, além de mestiços, misturados na luta dos pretos antipatriotas (sim, nem todos os brancos luso-africanos foram colonos e colonialistas, honra lhes seja feita!). Passaram-se então a dividir os processos, de forma a que brancos e mestiços aparecessem nuns julgamentos e a pretalhada noutros. Depois, para complicar, havia presos carismáticos, cujo martírio da perseguição induzia vontades de lutar, casos de Agostinho Neto, Padre Joaquim Pinto de Andrade e outros. Então, a Pide passou a mandar para o Aljube e Caxias, os presos colonias de elite, deixando aos tribunais militares coloniais “julgarem” os de menor condição social ou ressonância social. Mesmo assim, estes presos-bandeira eram incómodos, então passou-se à deportação selectiva (Agostinho Neto para a Ilha de Santo Antão em Cabo Verde, Joaquim Pinto de Andrade para a Ilha do Príncipe). Não deu, estes homens encontravam sempre forma de defenderem as suas ideias.
Se os “julgamentos” eram muitos e os réus aumentavam exponencialmente, o que fazer? Apresentar a julgamento milhares de pretos subversivos, com uns brancos e mestiços desnaturados à mistura? Quando se dizia que pretos e brancos eram todos felizes, do Minho a Timor, por serem portugueses? A solução foi dispensarem-se as formalidades dos “julgamentos”. No fundo, se aquilo era uma grotesca encenação, porquê insistir nela com riscos de repercussões indesejáveis? A PIDE passou então a ter poder de aplicar “administrativamente” a “fixação de residência” que podia ter lugar em qualquer parte do espaço nacional. E a PIDE passou a “fixar residência” aos seus presos africanos, depois de interrogados e torturados, em ... qualquer uma das suas cadeias. Sem prazo nem outra formalidade que o despacho do Pide-Mor em cada colónia. Mas as prisões localizadas nas capitais coloniais não chegavam para as encomendas e havia o inconveniente de as famílias e amigos dos presos se amontoarem aos portões querendo saber dos seus. Havia, pois, que levar os presos para longe das vistas e dos corações.
Lembraram-se de Tarrafal, o Campo entretanto vazio de presos luso-europeus. O nome não convinha, lembrava a nazi-fascismo, mas as instalações ainda estavam boas para pretos e ainda mais para brancos amigos de pretos. Solução: o sítio do Campo foi rebaptizado como Chão Bom (o que devia espicaçar o sadismo dos pides). E, assim, Adriano Moreira, com o seu singelo despacho de 17 de Junho de 1961, oficializou a reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal sob a designação de “campo de trabalho de Chão Bom”. Agora para africanos com manias de independências ou disso suspeitos. Excelente para que os militantes anticoloniais ali penassem, sem julgamento, sem prazo, sem assistência, afastados das famílias e sem capacidade de exercerem más influências. Apenas por decisão administrativa da Pide e como “fixação de residência”.
Os presos aumentavam as levas para o Tarrafal / Chão Bom. Eram cada vez mais e havia os custos das viagens. Havia que poupar porque a guerra colonial dava uma despesa danada. E, nestas circunstâncias, a receita é descentralizar. É então a altura, em 24 de Agosto de 1961, de a mesma Excelência, o Ministro do Ultramar, Dr. Adriano Moreira, pela Portaria 18.702, despachar laconicamente: “É instituído na província de Angola o campo de trabalho de Missombo”.
As guerras coloniais alastravam, os prisioneiros aumentavam, onde se metiam os que não se liquidavam sumariamente? Tanto preto preso, onde metê-los? Continuar a abrir campos? Claro, mas sobrecarregar o Ministro com mais portarias e mais dicas da escalada repressiva expostas (mesmo que disfarçada de actos administrativos incolores)? Não há mal que não tenha cura. O campo de São Nicolau, em Angola, abriu e já não precisou de Portaria. O mesmo com os Campos abertos em série em Moçambique (para descongestionarem Machava). O mesmo com o campo nos Bijagós na Guiné.
Os dois despachos, aqui citados, de Adriano Moreira, do venerando e honorável Professor Adriano Moreira, ficam como peças burocráticas perdidas na história da transição da ignomínia para o genocídio. Mostrando que há “criminosos de guerra” com direito hoje, na democracia, a serem atentamente escutados como “opinion maker”. Os “campos” passaram á história. Foram coisa para pretos. E para brancos amigos de pretos. Que, sabe-se, estavam na escala mais baixa do bom português.
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