Crise Académica de 1956/57
A mãe das revoltas dos estudantes
* João Ferreira
A contestação ao Decreto-lei 40 900 marca o início do divórcio entre a elite universitária e o Estado Novo. Foi o ponto de partida do movimento associativo estudantil, uma bola de neve que explodiu com fragor nas crises de 1962 e 1969, em Lisboa e em Coimbra.
As associações de estudantes nunca tinham sido bem vistas pelo regime autoritário. Apesar de o general Gomes da Costa ter sido recebido em triunfo pelas capas negras de Coimbra logo a seguir ao golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, a verdade é que tanto a Ditadura Militar como o Estado Novo instaurado pela Constituição de 1933 tudo fizeram para impedir a autonomia da vida estudantil nas três cidades universitárias então existentes em Portugal.
LUFADA DE AR FRESCO
A nomeação de Francisco Leite Pinto para ministro da Educação Nacional, em 7 de Julho de 1955, gerou expectativas de abertura. Com pouco mais de 40 anos, o engenheiro e professor no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, era considerado mais moderno e aberto do que o seu antecessor, Pires de Lima. “O actual ministro da Educação foi um estudante bastante irreverente para compreender e amar a irreverência da juventude”, disse Leite Pinto.
Reconhecendo o “deplorável atraso” de Portugal “em relação aos países ocidentais que já construíram um mundo de abundância”, Leite Pinto, embora fosse ministro de Salazar, não hesitou em afirmar algo capaz de fazer corar, à distância de 50 anos, Maria de Lurdes Rodrigues e os governantes socialistas deste início do século XXI: “Todo o dinheiro gasto na educação é um investimento económico rentável”, disse, citado pelo ‘Diário de Notícias’ de 28 de Dezembro de 1956.
SALAZAR PREOCUPA-SE
Em 20 de Dezembro de 1955, o Presidente do Conselho, Salazar, escreveu, numa carta ao Presidente da República, general Craveiro Lopes: “Nos últimos tempos, a polícia tem manifestado a sua grande preocupação acerca da captação muito intensa de estudantes para as organizações comunistas. Rapazes e raparigas das melhores famílias, tanto de bens como na formação moral, aparecem enredados nessas organizações.”
VIDA ASSOCIATIVA
O esbatimento da influência de organizações políticas da oposição – como o Movimento de Unidade Democrática (MUD Juvenil), teleguiado pelo Partido Comunista – nas associações de estudantes durante a primeira metade dos anos 50 foi acompanhado pelo crescimento da Juventude Universitária Católica (JUC), presidida pelo futuro ministro das Finanças social-democrata João Salgueiro, e a correspondente versão feminina (JUCF), liderada pela futura economista socialista Manuela Silva. Em Coimbra, continuava a destacar-se o Centro Académico da Democracia Cristã (CADC).
Além de questões de âmbito escolar, as associações ocupavam-se de problemas económicos e sociais dos estudantes, como a assistência médica, o alojamento e o emprego. Tinham ainda actividades culturais, incluindo o chamado turismo universitário, que dava a muitos estudantes a possibilidade de, pela primeira vez na vida, contactarem a realidade estrangeira.
O DECRETO-LEI 40 900
No dia 12 de Dezembro de 1956 é publicado em Diário da República o Decreto-lei (DL) n.º 40 900. O diploma regulamentava, de forma autoritária, a vida interna das associações. Reduzia a esfera de acção de cada uma à própria faculdade e submetia as associações a um controlo rígido por parte do Estado e das autoridades académicas. Era o fim da autonomia que ainda restava aos universitários.
A CRISE
Na noite da publicação do DL 40 900 em Diário da República realizou-se uma reunião interassociações (RIA), em Lisboa. Combinou-se enviar uma exposição crítica ao Ministério da Educação e coordenar a resistência com a Associação Académica de Coimbra (AAC) e Associação de Farmácia do Porto, a única legal na Universidade da Invicta.
No dia seguinte, a assembleia magna dos estudantes de Coimbra convocou uma manifestação para exigir a revogação do diploma. Ainda a 13 de Dezembro, um comunicado conjunto da AAC, da RIA de Lisboa e da Associação de Farmácia do Porto concluía que “a única solução para a satisfação dos seus legítimos interesses é a revogação do referido decreto”.
Vitória
A 15 de Janeiro de 1957, 17 deputados apresentaram um requerimento para que o DL 40 900 pudesse ser apreciado pela Assembleia Nacional. Os requerentes incluíam o ex-governante Daniel Barbosa e o futuro ministro da Educação Manuel Lopes de Almeida (responsável pela pasta durante a crise de 1962).
As associações mobilizaram-se para o debate parlamentar. No dia 16 de Janeiro, os universitários foram em manifestação até S. Bento e encheram as galerias. Os que não couberam concentraram-se nas imediações e foram alvo de uma carga policial.
Os deputados do partido único acabaram por exigir que fossem introduzidas emendas ao Decreto-lei, enviado à Câmara Corporativa, “pa-ra ser mais tarde devolvido a esta Assembleia com o respectivo parecer”.
A Câmara Corporativa elaborou o Parecer n.º 55/VI, com data de 23 de Maio de 1957, mas a Proposta de Lei n.º 48 – em que tinha sido transformado o Decreto-lei 40 900 – nunca mais voltou à Assembleia Nacional.
O regime tinha recuado perante a luta dos estudantes.
PROTAGONISTAS
João Salgueiro (n. 1934), presidente da JUC em 1956/57, tornou-se economista e foi ministro de Estado e das Finanças e do Plano no VIII Governo Constitucional (1981-1983), chefiado por Pinto Balsemão. Em 1969, foi subsecretário de Estado do planeamento de Marcello Caetano, cargo que abandonou, em ruptura com o regime. Em 970 foi um dos fundadores da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES). Actualmente, é presidente da Associação Portuguesa de Bancos. Nessas funções, entrou recentemente em polémica com o Governo, acusando-o de “peronismo”.
JUVENTUDE INQUIETA
No ano de 1956 o mundo deu muitas voltas, na política e não só. Elvis Presley apareceu no grande ecrã a cantar ‘Love Me Tender’ (o título do seu primeiro filme). James Dean, morto no ano anterior, tornou-se o ícone da juventude rebelde em ‘Fúria de Viver’. Brigitte Bardot partiu corações em ‘E Deus Criou a Mulher’, enquanto Grace Kelly trocava Hollywood pelo trono do Mónaco, casando-se com o príncipe Rainier. No futebol, o Real Madrid estreava-se a ganhar um novo troféu, a Taça dos Campeões Europeus.
O MUNDO NO TEMPO DA GUERRA FRIA
Na cena política internacional um bombardeiro B52 da Força Aérea norte-americana largava a primeira bomba H sobre o atol de Bikini, no Pacífico. Em Moscovo, corria o mês de Fevereiro de 1956 quando os delegados ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética ouviram, estupefactos, numa sessão secreta, o secretário-geral Nikita Kruchev denunciar os crimes de Estaline. A nacionalização do Canal de Suez, decretada pelo líder egípcio, coronel Nasser, levou à intervenção da França e da Inglaterra, que acabou numa retirada inglória quando o governo americano de Eisenhower decidiu tirar o tapete à “última aventura colonial” do Ocidente. Já o ano se aproximava do fim quando o povo de Budapeste se revoltou contra a tirania comunista e a Hungria pegou em armas contra a ocupação soviética. Ao longo de 1957 a repressão foi brutal.
in CORREIO DA MANHÃ 2007.03.12
As associações de estudantes nunca tinham sido bem vistas pelo regime autoritário. Apesar de o general Gomes da Costa ter sido recebido em triunfo pelas capas negras de Coimbra logo a seguir ao golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, a verdade é que tanto a Ditadura Militar como o Estado Novo instaurado pela Constituição de 1933 tudo fizeram para impedir a autonomia da vida estudantil nas três cidades universitárias então existentes em Portugal.
LUFADA DE AR FRESCO
A nomeação de Francisco Leite Pinto para ministro da Educação Nacional, em 7 de Julho de 1955, gerou expectativas de abertura. Com pouco mais de 40 anos, o engenheiro e professor no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, era considerado mais moderno e aberto do que o seu antecessor, Pires de Lima. “O actual ministro da Educação foi um estudante bastante irreverente para compreender e amar a irreverência da juventude”, disse Leite Pinto.
Reconhecendo o “deplorável atraso” de Portugal “em relação aos países ocidentais que já construíram um mundo de abundância”, Leite Pinto, embora fosse ministro de Salazar, não hesitou em afirmar algo capaz de fazer corar, à distância de 50 anos, Maria de Lurdes Rodrigues e os governantes socialistas deste início do século XXI: “Todo o dinheiro gasto na educação é um investimento económico rentável”, disse, citado pelo ‘Diário de Notícias’ de 28 de Dezembro de 1956.
SALAZAR PREOCUPA-SE
Em 20 de Dezembro de 1955, o Presidente do Conselho, Salazar, escreveu, numa carta ao Presidente da República, general Craveiro Lopes: “Nos últimos tempos, a polícia tem manifestado a sua grande preocupação acerca da captação muito intensa de estudantes para as organizações comunistas. Rapazes e raparigas das melhores famílias, tanto de bens como na formação moral, aparecem enredados nessas organizações.”
VIDA ASSOCIATIVA
O esbatimento da influência de organizações políticas da oposição – como o Movimento de Unidade Democrática (MUD Juvenil), teleguiado pelo Partido Comunista – nas associações de estudantes durante a primeira metade dos anos 50 foi acompanhado pelo crescimento da Juventude Universitária Católica (JUC), presidida pelo futuro ministro das Finanças social-democrata João Salgueiro, e a correspondente versão feminina (JUCF), liderada pela futura economista socialista Manuela Silva. Em Coimbra, continuava a destacar-se o Centro Académico da Democracia Cristã (CADC).
Além de questões de âmbito escolar, as associações ocupavam-se de problemas económicos e sociais dos estudantes, como a assistência médica, o alojamento e o emprego. Tinham ainda actividades culturais, incluindo o chamado turismo universitário, que dava a muitos estudantes a possibilidade de, pela primeira vez na vida, contactarem a realidade estrangeira.
O DECRETO-LEI 40 900
No dia 12 de Dezembro de 1956 é publicado em Diário da República o Decreto-lei (DL) n.º 40 900. O diploma regulamentava, de forma autoritária, a vida interna das associações. Reduzia a esfera de acção de cada uma à própria faculdade e submetia as associações a um controlo rígido por parte do Estado e das autoridades académicas. Era o fim da autonomia que ainda restava aos universitários.
A CRISE
Na noite da publicação do DL 40 900 em Diário da República realizou-se uma reunião interassociações (RIA), em Lisboa. Combinou-se enviar uma exposição crítica ao Ministério da Educação e coordenar a resistência com a Associação Académica de Coimbra (AAC) e Associação de Farmácia do Porto, a única legal na Universidade da Invicta.
No dia seguinte, a assembleia magna dos estudantes de Coimbra convocou uma manifestação para exigir a revogação do diploma. Ainda a 13 de Dezembro, um comunicado conjunto da AAC, da RIA de Lisboa e da Associação de Farmácia do Porto concluía que “a única solução para a satisfação dos seus legítimos interesses é a revogação do referido decreto”.
Vitória
A 15 de Janeiro de 1957, 17 deputados apresentaram um requerimento para que o DL 40 900 pudesse ser apreciado pela Assembleia Nacional. Os requerentes incluíam o ex-governante Daniel Barbosa e o futuro ministro da Educação Manuel Lopes de Almeida (responsável pela pasta durante a crise de 1962).
As associações mobilizaram-se para o debate parlamentar. No dia 16 de Janeiro, os universitários foram em manifestação até S. Bento e encheram as galerias. Os que não couberam concentraram-se nas imediações e foram alvo de uma carga policial.
Os deputados do partido único acabaram por exigir que fossem introduzidas emendas ao Decreto-lei, enviado à Câmara Corporativa, “pa-ra ser mais tarde devolvido a esta Assembleia com o respectivo parecer”.
A Câmara Corporativa elaborou o Parecer n.º 55/VI, com data de 23 de Maio de 1957, mas a Proposta de Lei n.º 48 – em que tinha sido transformado o Decreto-lei 40 900 – nunca mais voltou à Assembleia Nacional.
O regime tinha recuado perante a luta dos estudantes.
PROTAGONISTAS
João Salgueiro (n. 1934), presidente da JUC em 1956/57, tornou-se economista e foi ministro de Estado e das Finanças e do Plano no VIII Governo Constitucional (1981-1983), chefiado por Pinto Balsemão. Em 1969, foi subsecretário de Estado do planeamento de Marcello Caetano, cargo que abandonou, em ruptura com o regime. Em 970 foi um dos fundadores da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES). Actualmente, é presidente da Associação Portuguesa de Bancos. Nessas funções, entrou recentemente em polémica com o Governo, acusando-o de “peronismo”.
JUVENTUDE INQUIETA
No ano de 1956 o mundo deu muitas voltas, na política e não só. Elvis Presley apareceu no grande ecrã a cantar ‘Love Me Tender’ (o título do seu primeiro filme). James Dean, morto no ano anterior, tornou-se o ícone da juventude rebelde em ‘Fúria de Viver’. Brigitte Bardot partiu corações em ‘E Deus Criou a Mulher’, enquanto Grace Kelly trocava Hollywood pelo trono do Mónaco, casando-se com o príncipe Rainier. No futebol, o Real Madrid estreava-se a ganhar um novo troféu, a Taça dos Campeões Europeus.
O MUNDO NO TEMPO DA GUERRA FRIA
Na cena política internacional um bombardeiro B52 da Força Aérea norte-americana largava a primeira bomba H sobre o atol de Bikini, no Pacífico. Em Moscovo, corria o mês de Fevereiro de 1956 quando os delegados ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética ouviram, estupefactos, numa sessão secreta, o secretário-geral Nikita Kruchev denunciar os crimes de Estaline. A nacionalização do Canal de Suez, decretada pelo líder egípcio, coronel Nasser, levou à intervenção da França e da Inglaterra, que acabou numa retirada inglória quando o governo americano de Eisenhower decidiu tirar o tapete à “última aventura colonial” do Ocidente. Já o ano se aproximava do fim quando o povo de Budapeste se revoltou contra a tirania comunista e a Hungria pegou em armas contra a ocupação soviética. Ao longo de 1957 a repressão foi brutal.
in CORREIO DA MANHÃ 2007.03.12
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