No blog Kontratempos, o seu autor e animador voltou à carga com um novo texto em defesa das teses de que o Estado Novo não foi uma variante do fascismo. Mais uma vez, os apologistas do revisionismo histórico parecem preferir a lavagem de mãos à la Pilatos a uma assunção aberta da inércia e do comodismo que boa parte da intelectualidade burguesa teve (e continua a querer ter) em relação ao fascismo. A importância de combater o revisionismo histórico é de grande importância, já que face à actual campanha de branqueamento da história e de tentativa de criminalização do ideal comunista urge rebater tais teses falsificadoras.No seu post o autor começa por afirmar que para o antifascismo «considerar que o salazarismo possa não ter sido um fascismo equivale basicamente a dizer que ele não foi uma ditadura, desmontando a matriz identitária que sustentou as oposições comunistas a ditaduras de direita na Europa ocidental». Mais uma vez a estafada onda monocórdica da equiparação entre comunismo e fascismo. Já dei suficientes mostras das claras diferenças do comunismo – tanto como um corpo político de ideais, como um conjunto de práticas sociais e políticas – em relação ao fascismo pelo que não me demorarei muito neste campo. Basta apenas relembrar que o revisionismo histórico se sustenta no critério do número de vítimas e numa suposta igualdade de métodos repressivos entre os Estados fascistas e os Estados socialistas. Como se alguns dos ditos Estados democráticos – com os EUA à cabeça – não fossem dos principais sanguinários executantes de genocídios, massacres ou ataques armados a civis. O Iraque e seus cerca de 700 mil mortos civis (segundo a revista Lancet) desde a invasão em Maio de 2003 é apenas um exemplo.De seguida, o autor recorre aos conceitos de autoritarismo e totalitarismo para afirmar que ambos «não são simétricos. Designam obviamente sistemas repressivos, mas condições sociais, teóricas e ideológicas bem distintas». Curioso é o facto de o autor não definir nenhum dos conceitos mas resumir que se trata, de um lado, da assunção de uma distinção entre natureza e grau (algo que não é conseguido pelo autor) e, de outro lado, «consolidam-se como o grau superlativo de concentração do poder político». Mais uma vez não encontramos nenhuma definição conceptual nos argumentos do autor e ficamos sem saber o que é isso do “grau superlativo de concentração do poder político”. Será a consideração de que o poder político se concentra num pólo específico do Estado ou da sociedade? Esta parece ser a leitura mais provável do conceito enunciado. Se tal for verdade, a categoria utilizada é manifestamente vaga. Por outras palavras, o poder não é uma coisa que se tem e se distribui por todos os cidadãos, de forma heterogénea e desigual, mas é um resultado das relações sociais. Por isso, o poder político é sempre detido por uma classe – e administrado por uma categoria social ao seu serviço: a burocracia estatal. Portanto, concentração do poder político existe sempre nas sociedades de classes. Falta definir como essa concentração atinge domínios fascistas ou, ao inverso, democráticos. E nada disto é abordado pelo autor. Pelos vistos, o revisionismo histórico quer fazer passar o Estado Novo como um regime meramente autoritário recorrendo a fórmulas sem qualquer substância.O raciocínio do texto evolui seguidamente para uma tentativa de negação das raízes de classe do próprio fascismo, tomado no seu todo. Partindo da tese de que tanto as classes médias – trespassadas pelo medo da proletarização e do bolchevismo – como as classes populares teriam apoiado o(s) fascismo(s), procura-se ali deduzir que uma abordagem aos regimes autoritários e totalitários (na terminologia utilizada pelo autor) não faria «qualquer sentido o estrito enquadramento de classe para fascismo e nazismo». Mais, o autor acrescenta ainda que «isso é uma perspectiva marxista e não histórica nem sociológica», procurando remeter a vitalidade heurística e interpretativa (para não falar de transformação) que o marxismo comporta para o fundo do baú. Ora, é exactamente a perspectiva que o marxismo fornece de totalidade histórica e de ligação entre os fenómenos políticos com os fenómenos económicos e sociais que permite desvendar a verdadeira natureza de classe do fascismo. Ou seja, o fascismo não seria um fenómeno de classe se apenas dissesse respeito a uma única classe como se quer fazer crer. Na verdade, os fenómenos despoletados por uma classe nunca dizem respeito apenas a ela mas a todas as outras, existem sempre efeitos em todo o tecido social adjacente. Isso significa que além da composição social do fascismo – que teve, é certo, o apoio de parcelas significativas das classes populares, mas nunca nos níveis absurdos (1) que o autor aponta no seu texto – o fundamental tem sempre que ver com o carácter das práticas existentes. Isto é, a política económica fascista beneficiou quem? O grande capital ou as classes populares? Quem passava fome no fascismo? Quem eram os desempregados? A repressão feroz e sanguinária do fascismo foi aplicável a todas as classes ou foi quase exclusivamente apontada directamente a operários, camponeses e membros de organizações políticas e sindicais daquelas classes? Quantos operários foram presos e quantos patrões foram presos? Quantos comunistas foram assassinados e quantos grandes proprietários foram trespassados pelas balas assassinas? Para o autor do blog Kontratempos é sempre mais fácil afiançar que o fascismo não tem uma natureza de classe e que isso é invenção dos marxistas. Mas confrontado com as perguntas que acima expus, que dirá o autor? Quando são apresentadas questões directas e claras, como justificar a tese de que o fascismo é um fenómeno estritamente político quando os Krupp, Agnelli ou Champalimaud beneficiaram fortemente dos fascismos, respectivamente, alemão, italiano e português? Como se explicaria o largo envolvimento da Cofindustria – confederação patronal italiana – no planeamento do golpe fascista de 1921? Como se justificaria então o forte apoio de fortes consórcios capitalistas americanos à própria Alemanha nazi como Henry Ford – na produção de material de guerra e camiões – ou da IBM que fez abundantes lucros com a venda de um sistema que permitiu numerar os judeus e comunistas mandados para os campos de concentração nazi? No fundo, como esconder esta estreita e imbricada relação entre os fascismos e o grande capital? Estes são factos inequívocos e concretos e não meras enunciações teóricas e abstractas. Ora, perante a nudez da realidade responderemos com o manto diáfano da fantasia e do revisionismo desculpabilizante (como é o caso do autor do blog Kontratempos e das teses falsificadoras), ou aceitaremos enfrentar a realidade como ela é e lutar para que ela não se repita (como é o caso dos antifascistas)?
(1) O autor afirma que «em 1921, o conjunto de trabalhadores rurais, proletariado urbano e operariado no partido de Mussolini correspondia a 72% dos seus filiados; e no partido de Hitler, em 1933, os artesãos, operários e camponeses representavam 52% dos seus membros». Segundo autores tão distintos como Bracher como Poulantzas, o partido fascista italiano, em 1921, era composto por 17% de trabalhadores e o partido nazi por 32% em 1933. Em ambos os casos tais percentagens demonstram uma penetração no operariado inferior à percentagem na população total (24,3% na Itália de 1921 e 45% na Alemanha de 1933). O autor menciona igualmente artesãos e camponeses. Ora, tanto na Alemanha como na Itália boa parte dos artesãos eram pequenos proprietários de oficinas de tipo manufactureiro semi-feudal e portanto, resquícios de uma classe de um modo de produção em vias de ser ultrapassado e com uma consciência de classe facilmente cooptada para ideais fascistas que reivindicavam o regresso a um passado mítico. Por seu turno, os camponeses, entendidos num sentido alargado, incluem as várias classes que no campo detêm propriedades da terra. Todavia, o pequeno campesinato não emprega força de trabalho alheia e tem apenas uma pequena parcela de terra. Ao contrário, o grande campesinato vive numa situação distinta e oposta. Este último foi um apoiante muito importante dos fascismos italiano e alemão, ao passo que o primeiro foi a principal força social de resistência organizada ao fascismo italiano. Mesmo em plena ditadura fascista e nas eleições fraudulentas de 1924, a oposição (comunista e socialista) teve votações maioritárias no Sul camponês. Não é por acaso que depois da Guerra 39-45 o PCI tenha sido o partido claramente dominante nos campos do Sul. No caso alemão houve um apoio mais explícito do pequeno campesinato ao nazismo. Porém, o seu apoio teve muito mais a ver com a passagem de 80% dos votos do Centro Católico (partido conservador alemão da época e que tinha larga influência no pequeno campesinato do Leste alemão) para o partido nazi, na medida em que tanto o SPD como o PCA mantiveram uma ligação relativamente forte com camadas do pequeno campesinato ocidental. Quanto ao operariado industrial, basta referir que nas eleições (Março de 1923) para as comissões de trabalhadores da Fiat em Turim, a CGL (a confederação sindical de esquerda) venceu com uma larga maioria de 72,6%, contra os 27,4% da lista fascista. Isto em plena ditadura fascista. Em 1924 – último ano em que se realizaram eleições no fascismo italiano – o voto na CGL aumentou para 85,8%, caindo os fascistas para os 14,2%.Portanto, não faz sentido recorrer à frase do autor liberal Lipset quando este aponta para o facto de que «os movimentos extremistas e as ideologias intolerantes da sociedade moderna são sustentados muito mais pelos meios populares do que pelas classes abastadas». Se é inquestionável que o fascismo necessita (e teve) apoio popular, daqui não se pode deduzir que é o povo trabalhador e camponês que pelos seus próprios meios políticos e ideológicos adere ao fascismo mas, ao contrário, é o baixo grau de consciencialização política e social de camadas das classes populares – com a força e penetração de ideologias burguesas no seu seio – que permite a sua instrumentalização pelo fascismo. Um exemplo muito simples e básico. O operariado germânico, em 1933, dividiu-se muito fortemente entre o apoio aos nazis e ao PCA. A camada de operários que votavam nos comunistas era sobretudo aqueles que tinham maior história de luta nas fábricas e que foram participantes activos nas vigorosas lutas de 1918 a 23. Logo, um operariado muito mais combativo e com uma intervenção política e sindical muito mais vincada, com uma consciência de classe muito mais desenvolvida. Por seu turno, o operariado alemão que votava em Hitler consistia nos desempregados de longa duração e em jovens trabalhadores maciçamente atingidos pelo desemprego. Por conseguinte, facilmente manipuláveis pelo partido nazi que rápida e imediatamente os ganhava para o seu lado com o discurso (que hoje está na moda em Portugal) de que a culpa era dos trabalhadores que estavam empregados – acusados pelos nazis de privilegiados – e, claro está, do lobby judaico-comunista que controlaria a economia alemã. Deste trabalho ideológico e político de manipulação das massas mais pauperizadas e mais despolitizadas pelos partidos fascistas – instrumentos políticos do grande capital para instaurar regimes políticos que alicerçassem melhores condições para a acumulação capitalista – nada é dito pelas teses do revisionismo histórico.
João Valente Aguiar
Retirado do Blog AS VINHAS DA IRA
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