A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

domingo, abril 01, 2007


Génese de Um Movimento Musical: a canção de protesto

É impossível a compreensão global do que representou toda a revolução musical, de que José Afonso foi um dos principais responsáveis, sem a contextualização de todo o movimento nas suas diversas fases. Já neste livro se falou do fado de Coimbra, das baladas, da música de intervenção. Já se concluiu que em todos estes géneros e sub-géneros se encontram algumas das mais genuínas manifestações musicais de arte popular - entendida aqui na acepção «da veracidade antropológica da criação artística, a da coerência da forma e conteúdo, sentidos imanentes a uma situação realmente vivida pelo povo», como a caracteriza o musicólogo Jorge Lima Barreto. Mas, afinal, como e quando foi que tudo começou?

Anos 50

Recuemos aos últimos anos da década de 50. Os marxistas europeus tentam aos poucos recompor-se dos abalos causados pela desestalinização de Krutchov, enquanto os sobreviventes do movimento surrealista lutam por provar que ainda mexem, através de esforços cada vez mais solitários. Em Cuba, os guerrilheiros que combatem o ditador Fulgêncio Batista, fazem nascer uma nova forma de esperança revolucionária e, em França, Jacques Brel sobe ao palco do Olympia para garantir que «les bourgeois c'est comme les cochons / plus ça devient vieux / plus ça devient bêttes», enquanto um quarentão anarquista, Léo Ferré, canta no Bobino e escandaliza os intelectuais pequeno-burgueses ao musicar Les Fleurs du Mal, de Baudelaire. Musicalmente, as atenções do público voltam-se, no entanto, para o outro lado do Atlântico, onde os ritmos alucinantes de Bill Haley (and His Comets) e Elvis Presley causam já algumas preocupações entre os defensores dos bons costumes.

Ao mesmo tempo, a pacatez lusitana propagandeada pelos órgãos de apoio ao regime de Salazar sofre sérios abalos com o desenvolvimento dos grandes movimentos de massas em que sobressai a campanha em torno da candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República, durante a encenação eleitoral de 1958. Um ano antes, em Aveiro, a Oposição Democrática, impulsionada por Mário Sacramento [Mário Sacramento (1920-1969), médico e ensaísta, foi um dos mais importantes teóricos do neo-realismo e o grande impulsionador dos congressos antifascistas de Aveiro], promovia um Congresso Republicano onde pela primeira vez são debatidas as formas de luta legais e semi-legais contra o fascismo. A agitação política acabará por alargar-se às colónias de África, onde germinavam já as sementes da guerrilha que, a partir de 1961, terá início em Angola e, depois, se estenderá às três principais possessões portuguesas do continente negro.

Todo este conjunto de situações tem, obviamente, uma importância fundamental no incremento do movimento musical que começa a desenhar-se e que levará a uma transformação radical do cenário em que, até aí, se movimentava a denominada "canção ligeira" portuguesa. Os cantores então existentes pouco mais conseguiam fazer do que limitar-se aos circuitos normais da Rádio (e, posteriormente, também da Televisão), algumas digressões pela província (e, nos casos mais importantes, pelo estrangeiro) e à gravação de discos, se a popularidade do artista o permitisse. A música tradicional, por seu lado, confinava-se às representações dos 'ranchos folclóricos' instrumentalizados pelo Secretariado Nacional da Informação, SNI, o departamento de propaganda do regime. Restava o fado: em Lisboa, transformado na canção nacional, frequentemente pastosa e obediente, e em Coimbra, onde sofrera sucessivas transformações devido à acção mais ou menos moralizadora das gerações de estudantes-cantores que por lá passaram.

Em Coimbra...

É, justamente, a partir de Coimbra que algo de novo começa a desenhar-se, num sentido diametralmente oposto ao então em vigor. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira são os dois grandes impulsionadores do movimento que, a partir da recuperação do fado tradicional coimbrão, há-de agitar as pautas e criar sérios embaraços ao decrépito Estado Novo. A edição da Balada do Outono, de José Afonso, é um dos primeiros reflexos do movimento que, timidamente, começava a despontar. Adriano junta-se-lhe logo de seguida e será a sua Trova do Vento Que Passa que irá desenterrar, definitivamente, em 1962, o "machado de guerra" da música contra o obscurantismo do regime.

Já professor do ensino secundário e pai de dois filhos, Zeca Afonso cria composições como Menino do Bairro Negro, Os vampiros e No Lago do Breu e começa a ser solicitado, com uma frequência cada vez maior, para os famosos "convívios" estudantis, formalizados em 1961, no Encontro Nacional de Estudantes que se realizou em Coimbra, apesar de proibido pelas autoridades académicas e reprimido pela polícia. Mas, nessa altura, Zeca ainda encarava a música apenas como um sucedâneo da sua actividade como professor. As primeiras "cantorias" aconteceram, de facto, no contacto com os seus alunos, nos sucessivos liceus e escolas por onde passou, sem quaisquer intuitos comerciais ou artísticos.

Não só em Coimbra...

Mas a resistência através da canção não se fazia só em Coimbra. Ao mesmo tempo que Zeca e Adriano tentavam criar um movimento capaz de incentivar as lutas que por cá se faziam, um jovem músico nascido em Angola recusava a guerra colonial e fixava residência em Paris, onde começou a compor os seus primeiros temas. Chamava-se (e chama-se) Luís Cília e tinha sido um dos frequentadores desse "antro subversivo" que era a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, por onde passaram, entre outros, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. O encontro de Cília com o poeta Daniel Filipe, em 1962, teve uma importância decisiva na sua opção musical. Meu país e O menino negro não entrou na roda foram as primeiras canções que compôs e, em 1964, edita, na etiqueta Le Chant du Monde, o seu primeiro disco, Portugal, Angola - Chants de lutte, que, como os que se lhe seguiram, nunca teve edição autorizada no nosso país.

A Paris vai ter, mais ou menos pela mesma altura, José Mário Branco, que anos depois terá um papel central na renovação em curso. Por cá, os "convívios" sucediam-se, sob as mais diversas formas: bailes, conferências, sessões de cinema, debates, sessões de poesia. Nomes novos vão aparecendo, um pouco por toda a parte. Ainda em Coimbra, fazem-se ouvir as guitarras de Artur Paredes e Carlos Paredes, a provar que a música instrumental pode também uma forma de luta. Ficaram célebres as numerosas sessões de poemas em que Carlos Paredes participou, como simples acompanhante do declamador de serviço, traduzindo nas cordas da guitarra, a força das palavras ditas.

O Movimento estava criado...

O "movimento" estava criado. A Zeca, Adriano e Cília outros cantores se juntam, tendo, como ponto comum, uma certa simplicidade musical e um mais ou menos camuflado vanguardismo dos textos -mensagens que veiculavam. Multiplicam-se sessões de canto por todo o país, quase sempre realizadas mais ou menos clandestinamente e muitas vezes terminando antes do tempo, devido às intervenções súbitas da polícia política, a tenebrosa Pide. Outras vezes, eram os "imprevistos" causados pelos "defensores da ordem" que obrigavam a soluções de ocasião, como aconteceu um dia, na Faculdade de Ciências de Lisboa, quando Zeca Afonso se viu obrigado a cantar às escuras e sem microfone, porque a instalação eléctrica fora sabotada por dois pides disfarçados de... electricistas!

O Papel do Zip-Zip

Entretanto, e apesar da barreira de silêncio imposta pelos detentores do poder, a própria Televisão acabaria por se transformar num importante meio de divulgação e incentivo da actividade dos "cantores de texto", com o aparecimento, em fins da década de 60, do "Zip Zip". Foi neste histórico programa de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz que uma boa parte dos "baladeiros" conseguiu, pela primeira vez, apresentar as suas composições ao grande público. Por ali passaram, entre muitos outros, Manuel Freire, Vieira da Silva, o (então) padre Francisco Fanhais, José Jorge Letria, António Macedo, Pedro Barroso, Rita Olivais, Hugo Maia de Loureiro, António Pedro Braga, Duarte e Ciríaco...

Mudam-se os Tempos...

Ao mesmo tempo, na Rádio Renascença, programas como "Limite" e "Página Um" começavam, também, a prestar uma atenção especial aos novos cantores. A Pedra Filosofal de Manuel Freire torna-se o primeiro grande êxito de vendas de uma canção "de texto" e, em princípios dos anos 70, novos ventos começam a soprar, com a edição dos LPs Traz Outro Amigo Também e Cantigas do Maio, ambos de José Afonso. Uma vez mais, Zeca é o líder involuntário desta autêntica "revolução na revolução", através da qual deixa de se considerar importante apenas o que se diz, para se favorecer o modo como. Esta transformação estética verifica-se na altura em que, do exílio, dois outros nomes vêm surpreender o público lusitano: o já citado José Mário Branco (que, depois de uma estreia discreta em disco, nos anos 60, faz editar em 1971 Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, um álbum rapidamente "condenado" a fazer história) e Sérgio Godinho, de certa forma o representante de um outro lado da mesma geração, marcada pelo kerouakiano universo "on the road"...

Em Agosto de 1971, uma pequena povoação do Alto Minho, a poucos quilómetros da fronteira com a Espanha, torna-se o centro das atenções da juventude portuguesa. Era Vilar de Mouros, cujo nome ficaria indissoluvelmente ligado ao primeiro grande espectáculo de música ao vivo realizado no nosso país. Não se tratando, especificamente, de um concerto de música popular (ou de intervenção), o Festival de Vilar de Mouros representou, contudo, a ruptura com uma certa indiferença que até então se vivia. Uma revista da época classificava o acontecimento como «um símbolo, uma prova irrefutável» da importância da pop-music para as camadas jovens portuguesas.

Zeca também lá esteve. Ao todo, mais de 30 mil jovens oriundos de todos os pontos do país ali se deslocaram para participar na modesta (mas honesta!) versão lusitana dos festivais de Wight e Woodstock. Afinal, o saldo mais importante dos dois dias de Vilar de Mouros estava na prova inequívoca de que a renovação musical portuguesa era já um fenómeno imparável.

Outros cantores...

Aos "cantores de intervenção" dos primeiros tempos e da "era Zip", outros nomes começavam, entretanto, ajuntar-se: Fausto, Samuel, Vitorino estão entre os que mais se destacam. E, apostando em outras vias (que não passassem necessariamente pelo conjunto texto, viola e voz), já se notavam nomes como os de Fernando Tordo e Carlos Mendes. José Cid, depois de ter contribuído para a renovação, com temas como Balada Para D. Inês e A Lenda de El-Rei D. Sebastião, além de algumas das primeiras experiências na área do rock, optava agora por caminhos diferentes, mais cómodos e certamente mais lucrativos. Dos outros, destacavam-se aqueles que o jornalista João Paulo Guerra baptizaria para sempre como "nacional-cançonetistas" (numa alusão irónica aos "nacional-socialistas" de Hitler) cuja atitude para com os cantores de protesto era geralmente de indiferença; e, numa área um tanto híbrida, os que sem se empenharem directamente no movimento, também não o renegavam. E que, após 1974, acabariam mesmo por aderir, com maior ou menor discrição, às novas tendências.

Lisboa, 29 de Março de 1974 - Coliseu dos Recreios

A última grande manifestação cultural de massas do tempo da ditadura aconteceu em Lisboa, a 29 de Março de 1974. Na véspera, Marcello Caetano dirigira aos telespectadores mais uma (a última) das suas "conversas em família" ['Conversas em família' era a designação das intervenções televisivas que Marcello Caetano efectuava regularmente. Tratava-se de discursos previamente escritos, mas lidos como se fossem improvisos. Para esse efeito, a RTP comprou o seu primeiro tele-ponto.]. À noite, o Coliseu dos Recreios, abriu as portas para o primeiro e o mais histórico dos encontros ao vivo da música portuguesa. Organizado pela Casa da Imprensa, marcou de forma inequívoca o fim próximo do regime. José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Fausto, José Jorge Letria, Carlos Paredes, Fernando Tordo, José Barata Moura, Ary dos Santos e Vitorino são os nomes principais da "festa", autorizada depois de algumas diligências nada fáceis por parte da Casa da Imprensa.

Com a lotação esgotada desde muitos dias antes, o Coliseu transforma-se num imenso coro de cinco mil vozes dispostas a cantar bem alto o outro lado da realidade permitida. Há agentes da Pide por todo o lado, ninguém o ignora. O espectáculo tarda a começar porque Adriano não tinha enviado os textos ao "exame prévio" da Censura. A situação acabará por resolver-se graças a dois censores "casualmente" de serviço na plateia do Coliseu que, ali mesmo, decidem quais os temas que podem ou não ser ouvidos.

Quando finalmente tem início o "desfile", é a apoteose. Primeiro com alguns equívocos, como aconteceu durante a primeira parte da actuação de José Carlos Ary dos Santos, recebida com uma chuvada de apupos por parte do público. Mas a força da sua poesia impôs-se e quando debitou «SARL, SARL, a pança do patrão não lhe cabe na pele» já ninguém tinha dúvidas de que aquele homem era efectivamente dos nossos...

Depois, foi o grande coro colectivo, a culminar com os cinco mil espectadores, de pé, a entoar os versos de Grândola Vila Morena, ironicamente a única canção de Zeca a passar integralmente as malhas da Censura. E é o seu grande impacto na noite de 29 de Março que irá determinar a sua escolha para senha do Movimento das Forças Armadas, na noite de 24 para 25 de Abril.

FONTE:

http://rateyourmusic.com/list/Altair82/contos_velhos__rumos_novos/


FOTO : Coliseu dos Recreios, Lisboa, 29 Março 1974

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