Aqui neste nono andar ouço o coro monótono dos grilos ...
* Victor Nogueira
Aqui neste nono andar ouço o coro monótono dos grilos, entrecortado pelo latir dos cães e o ruído dos carros que esparsamente passam lá em baixo na estrada para Porto Salvo. Olho pela janela e a escuridão encobriu os campos verdejantes, onde a agricultura vai cedendo lugar ao cimento armado e ás tiras de asfalto. O negrume da noite está pontilhado de luzeiros e apenas a minha memória me diz que há pouco toda a paisagem estava coberta de sol e que além ao fundo, por entre as casas, está a serra de Sintra mais o castelo mouro e o palácio da Pena.
Olho pela janela e para cá do vidro reflecte-se a reprodução dum quadro do Modigliani, feito pelo meu tio no tempo em que estudava arquitectura, para além do reflexo da minha imagem, para a qual não sorrio desta feita! Não me apetece sorrir para mim mesmo como quem sorri a um amigo cuja presença seja repousante e fonte de alegria e serenidade.
Uma frase tua “começar tudo de novo”, quando falavas da revolução que ainda não se fez, provoca-me hoje um riso interior amargo, porque hoje é o tempo de sufocar as emoções, os sentimentos e a solidariedade. Os amigos estão dispersos e de alguns (algumas) resta apenas a memória encantada ou o desencanto. Hoje cada um está na sua vida, com as suas indisponibilidades, os seus compromissos. Já não volta o tempo em que o café Arcada era o ponto de encontro, estudo ou cavaqueira e o meu quarto fonte de contrariedades para a D. Vitória, sempre invadido pela malta.
A fraternidade de Abril durou o escasso tempo de uma semana, quando nas ruas todos sorriam e parecia que o futuro estava todo ali, ao alcance das nossas mãos, generoso!
Releio o que escrevi e o meu pensamento rápido perdeu-se noutros rumos, com a lentidão exasperante da transposição para o papel.
Nada volta para trás! Outro, e não aquele, será o tempo em que me sinta suspenso de ti, da tua alegria e do que parecia ser ..., sei lá (ou sei e não quero escrever!?), talvez a tua disponibilidade e atenção.
Escrito em Paço de Arcos num dia qualquer de meados de 1988
Escrito em Paço de Arcos num dia qualquer de meados de 1988
Fotografia de Victor Nogueira, a partir da janela de que se fala no texto
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