Ao sabor do vento
Livro ou multimédia?
* Rui Marques
É antigo o desejo de poder somar o melhor de vários mundos. Nem sempre isso é possível. Neste caso é indispensável.
Em tempo de Feiras do Livro, vimos assistindo, em diferentes contextos, a discursos inflamados entre ‘conservadores’ e ‘progressistas’, entre apologistas da leitura acima de tudo – e sem mais nada ...– e defensores, a todo o custo, das maravilhas quase miraculosas do multimédia interactivo. Esta já clássica e esperada contraposição entre os defensores acérrimos da cultura do livro contra os igualmente fanáticos do novo multimédia é uma discussão estéril e sem sentido.
Com efeito, argumentam os defensores radicais do livro que este estimula a análise estruturada das ideias, a imaginação despida de imagens pré e totalmente definidas e o prazer da viagem pelas histórias lidas serenamente. É verdade. Somam também o contributo da leitura para o domínio da língua, para a capacidade de apreciar a arte da narrativa ou a beleza da poesia. E concluem, na sua análise, que tudo o que afaste os cidadãos, particularmente as crianças e jovens, dos bons caminhos da leitura é obra dos demónios da modernidade.
Por outro lado, quem está na trincheira do multimédia puxa pelos argumentos da riqueza decorrente da utilização integrada de vários meios (texto, imagem, som), da força do pensamento em rede, da imensidão de informação disponível na internet ou num DVD, da ‘adrenalina’ de um jogo de computador. Também têm razão. Mas enganam-se quando deliciados com o ‘sucesso de mercado’ destes novos suportes, aos quais as crianças aderem com grande entusiasmo, já antecipam no horizonte o ‘fim do livro’.
Este combate, que supõe uma mútua exclusão – ou, pelo menos, a clara e inequívoca sobreposição de um mundo ao outro –, não se enquadra num tempo, que é o nosso, feito mais de ‘e’ do que ‘ou’. Quem disse que estes meios são obrigatoriamente adversários? Porquê impor uma escolha difícil que não deve ser feita? Importa olhar para a História.
Se recuássemos alguns milénios até à invenção da escrita, ou somente uns séculos até ao tempo de Gutenberg, certamente assistiríamos a idêntica disputa entre os que se fixavam nas formas de comunicação preexistentes e os que se deixavam fascinar pelas novidades que o génio humano ia construindo. Essa disputa repetiu-se, evidentemente, nos novos confrontos com a rádio, com o cinema, ou, mais recentemente, com a televisão. Curiosamente, nenhuma destas sucessivas realidades eliminou a anterior. Apesar da normal perturbação que qualquer inovação provoca num ambiente estabilizado, o que podemos constatar é que estes vários meios se ajustaram, ganhando cada qual o seu espaço e sentido próprios, sem ‘abafar’ todos os antecedentes. Mais: deixaram sempre espaço para que novas formas de comunicar fossem surgindo, acrescentando novos botões ao bouquet do conhecimento acessível.
É antigo o desejo de poder somar o melhor de vários mundos. Nem sempre isso é possível. Neste caso, parece não só possível, como indispensável. Essa será a conjunção de futuro.
in Correio da Manhã 2007.06.06
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