A Internacional

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quinta-feira, maio 03, 2007


Imigrantes: Os «enteados da nação»

05-Abr-2007

imigracaoComecemos por interrogar uma evidência: um imigrante é uma pessoa que se desloca de um Estado-nação para outro, com o objectivo de aí residir ou trabalhar. E é isso que ele é, de acordo com as definições oficiais. Mas no discurso corrente, nos meios de comunicação social e na linguagem dos partidos e dos funcionários do Estado, a palavra «imigrante» raramente é aplicada aos ingleses e alemães que cá vivem a sua reforma dourada, ou para os quadros das empresas internacionais a trabalhar em Portugal.

Por Bruno Peixe Dias e Tiago Ralha Farinha, publicado originalmente na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique de Março de 2007

Os imigrantes, de acordo com as representações e imagens largamente partilhadas que estão associadas a este significante, são os trabalhadores pobres que vêm do Brasil, da Ucrânia, de Cabo Verde, da China ou do Paquistão, à procura de emprego num país mais rico. Na verdade, como notou o filósofo Alain Badiou, a propósito de uma realidade francesa, que também é portuguesa, «imigrante» tornou-se um eufemismo para «trabalhador». Ou seja, o imigrante ocupa hoje o lugar estrutural no imaginário social e político que foi ocupado, ao longo dos séculos XIX e XX, pela classe operária dos países ocidentais.

A fórmula, de tão repetida, já cansa: de país de emigração, Portugal passou a país de imigração. Os milhões que a Europa comunitária fez entrar em Portugal e os grandes projectos de construção de infra-estruturas trouxeram uma necessidade crescente de mão-de-obra barata, flexível, pouco exigente e descartável, isto é, que aceitasse trabalhar muitas horas, por baixos salários e sem vínculos laborais duradouros. Os imigrantes satisfizeram esta procura de trabalho. E têm-na satisfeito desde então. Os primeiros contingentes significativos vieram das ex-colónias, principalmente dos PALOP, num movimento semelhante ao que se tinha registado noutras ex- potências coloniais europeias. À imigração pós-colonial seguiu-se outro tipo de imigração, menos previsível, em resultado da integração europeia: a entrada de imigrantes de países do Leste, a maior parte deles com vistos temporários passados por outros países da União Europeia, como a Alemanha e a Áustria. Com o final da década de noventa, aumenta também o número de imigrantes brasileiros que entram em Portugal à procura de trabalho.

Hoje em dia, à semelhança de outros países de capitalismo avançado, o funcionamento de certos segmentos de mercado de trabalho em Portugal passaram a depender em larga medida da força de trabalho imigrante. É o caso dos empregos mais mal pagos e menos qualificados da construção civil, do turismo e da hotelaria. Ao mesmo tempo, este tipo de trabalho tornou-se indissociável dos imigrantes no imaginário popular, confirmando a condição de subalternidade que é constitutiva da condição do imigrante laboral em Portugal. Esta subalternidade é muitas vezes confirmada até por alguns que, de boa vontade, pensam estar a defender os imigrantes do racismo e da xenofobia populares, afirmando, em tom apologético, que os «imigrantes não estão cá para roubar os nossos empregos, vêm trabalhar para os empregos que os portugueses não querem».

Dados do Inquérito ao Emprego do Instituto Nacional de Estatística relativos a 2001 dão conta desta etnicização do mercado de trabalho em Portugal, com os imigrantes da União Europeia a trabalhar como quadros superiores ou em profissões científicas e técnicas, e os imigrantes dos PALOP, do Brasil e da Europa do Leste a ocupar os sectores do mercado de trabalho menos qualificados, que são os mais mal pagos e os mais precários.

No imaginário mediático e popular, colonizado por vulgatas liberais e individualistas, o processo migratório resulta principalmente da vontade do imigrante, que vem bater à porta do país mais rico em busca de uma vida melhor. Que os movimentos migratórios não são erráticos e seguem um padrão, provam-no as migrações pós-coloniais do terceiro para o primeiro mundo, com os imigrantes a aproveitar afinidades linguísticas e culturais e redes preestabelecidas de modo a facilitar a sua integração laboral. Mas as migrações laborais não dependem apenas da vontade do imigrante. Existe uma procura para o trabalho imigrante nos países capitalistas avançados. A generalização do trabalho imigrante nestes países corresponde a uma nova fase da acumulação do capital - a fase neoliberal, de erosão do Estado-providência (que, em Portugal, para usar a feliz expressão de Miguel Vale de Almeida, morreu à nascença)1, a do abandono das responsabilidades sociais do Estado e da ultrapassagem de uma concepção de cidadania inclusiva ligada aos direitos sociais. Os empregadores têm já hoje, com os trabalhadores imigrantes, o mercado de trabalho flexível que as novas regulamentações laborais querem também impor aos trabalhadores nacionais. Que melhor força de trabalho do que uma constituída por indivíduos sem a memória das lutas sociais, sem o sentimento de pertença a um sujeito político colectivo? A expressão «deslocalização no local»2 tornou-se uma boa descrição da exploração de imigrantes ilegais como método de evasão aos direitos sociais que ainda restam.

Apesar da sua importância económica, a vontade de regular os fluxos, que o mesmo é dizer, a vontade declarada de policiar e travar a entrada de imigrantes, é hoje lugar comum no discurso político nacional e europeu. Esta contradição é apenas aparente e este discurso tem efeitos profundos no estatuto que os imigrantes vão ter na nossa sociedade. Depois de serem recebidos com desconfiança e hostilidade, os imigrantes são reduzidos à sua condição de força de trabalho, tolerada pela sua utilidade ao desenvolvimento do país, mas remetidos a uma invisibilidade política que se traduz num afastamento activo da esfera pública. Dito de outra maneira, aos imigrantes é negado qualquer papel político na nossa sociedade.

Esta subalternização do imigrante tem subjacente a sua exclusão da comunidade política, uma exclusão que é constitutiva do próprio estatuto do imigrante na nossa sociedade, em consequência de uma concepção liberal da cidadania, que entende esta última como propriedade privada. A cidadania e o usufruto dos direitos que lhe estão associados são assim entendidos como uma prerrogativa dos que detêm a nacionalidade de um determinado país, sendo essa nacionalidade um estatuto de difícil aquisição. Se o sistema colonial assentava na divisão entre o cidadão da metrópole e o indígena, o sistema de exploração do trabalho imigrante assenta na divisão entre o cidadão e o imigrante. Se a primeira estruturava o colonialismo, a segunda estrutura a relação entre primeiro mundo e terceiro mundo do nosso presente pós-colonial3.

É aqui bem visível a hipocrisia com que a universalidade dos direitos humanos é não só reiterada, mas também reclamada como herança de um Ocidente liberal, parlamentar e capitalista, para afirmar a sua superioridade moral face aos seus proclamados inimigos. Os direitos humanos são em princípio inerentes a todo e qualquer indivíduo, isto é, universais, mas esta concepção entra em choque com a prática corrente nos Estados-nação como Portugal, que continuam a subordinar os direitos do indivíduo à posse da nacionalidade.

As políticas de imigração e de aquisição de nacionalidade são por isso instrumentos essenciais à manutenção desta ordem. Por um lado permite-se a entrada de trabalhadores imigrantes, por outro lado garante-se que estes mesmos trabalhadores serão permanentemente temporários, independentemente do tempo que ficarem, condenados a ser cidadãos de segunda e a acatar as regras de um contrato cujos termos estão proibidos de negociar. A regulação dos fluxos de trabalhadores dos países pobres para os países ricos é tratada por estes últimos como uma questão policial, tendência que já se verificava, mas mais claramente assumida desde que o mundo ocidental tomou como sua a cruzada antiterrorista dos Estados Unidos. Atraídos por um primeiro mundo fechado no seu conforto, estes imigrantes são necessários às economias dos países de capitalismo avançado, mas são ao mesmo tempo mantidos à distância por leis e políticas restritivas, cujo efeito é a ilegalidade, dada a manifesta incapacidade dos Estados de controlarem a entrada de estrangeiros.

De vez em quando surge uma manifestação por parte desses Estados, operações policiais aparatosas de caça ao imigrante indocumentado, como a que se verificou numa festa de brasileiros num restaurante do Jardim Zoológico em Março de 2006. Asserções de autoridade de um Estado cada vez mais incapaz de controlar as forças económicas globais que o ultrapassam, mas interessado em mostrar a uma opinião pública xenófoba que ainda detém autoridade. São manifestações erráticas, sem reais consequências senão reforçar a condição de clandestinidade dos imigrantes que vivem indocumentados em Portugal, e portanto reforçar a sua vulnerabilidade face à exploração económica.

A nova lei da imigração do governo português não muda este estado de coisas; isto é, tal como as anteriores leis da imigração, é uma lei policial, em que a entrada de imigrantes está dependente da fixação de uma quota, que supostamente reflecte as necessidades do mercado de trabalho em Portugal. E também não avança com nenhuma provisão para regularizar a estada dos imigrantes que vivem em Portugal sem documentos.

A racialização da força de trabalho, a sua divisão de acordo com linhas étnicas ou nacionais tem como efeito a divisão dentro do próprio campo dos trabalhadores e dificulta a participação dos imigrantes nas formas tradicionais de luta de classes, já de si enfraquecidas pela precarização efectuada pelas políticas neoliberais no mercado de trabalho. A defesa dos direitos dos imigrantes tornou-se por isso terreno fértil de organizações assistenciais, muitas delas ligadas à Igreja, e de associações de carácter humanitário. Apesar da sua boa vontade, para o assistencialismo e para a caridade humanitária o imigrante é uma vítima a defender, muitas vezes de outros imigrantes, outras do Estado, mas alguém a precisar de protecção na sua fragilidade.

O desafio de uma política emancipatória é outro. Os imigrantes, nas nossas sociedades, simplesmente não contam, do ponto de vista político. Numa sociedade policial em que cada um tem o seu lugar, o deles é definitivamente na soleira, nem dentro nem fora. Reduzidos à mera condição de força de trabalho, o seu destino é esgotar os seus corpos no processo de acumulação de capital, sem nunca serem definitivamente parte do país onde despendem essa força. A luta política passa hoje, necessariamente, na nossa sociedade, pela reivindicação de igualdade para os imigrantes.

* Investigadores da Númena - Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas.

1 Miguel Vale de Almeida, Comentário, in Manuela Ribeiro Sanches (org.), Portugal não é um País Pequeno: contar o «império» na pós-colonialidade, Cotovia, Lisboa, 2006.

2 Tradução da expressão francesa «délocalisation sur place».

3 Kristen Hill Maher, «Who Has a Right to Rights: Citizenship's Exclusion in an Age of Migration», in Alison Brysk (ed.), Globalization and Human Rights, University of California Press, Berkeley, 2002; Étienne Balibar, Nous, citoyens d'Europe, La Découverte, Paris, 2001.

in esquerda.net 2207.04.03

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