Economia
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Wen Jiabao, primeiro-ministro chinês, atribuiu a crise ao desatino consumista dos americanos, gente reconhecidamente pouco inclinada à frugalidade e à poupança. É difícil acreditar que Jiabao ignore as conexões entre o sucesso econômico de seu país e as façanhas perpetradas pelos sábios do mercado financeiro americano no propósito de entupir as famílias de dívidas e abiscoitar os bônus de suas travessuras.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo, no jornal Valor Econômico
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O consumidor americano e o mercado financeiro dos Estados Unidos foram colocados a serviço da construção do espaço econômico global que, em suas dimensões produtiva, comercial e monetária, se revelou tão virtuoso quanto conflitivo. Para começo de conversa, a soberania monetária americana garantiu a expansão da grande empresa - com efeitos sobre a distribuição espacial da indústria manufatureira e mais recentemente dos serviços. Esse "privilégio absurdo" permitiu a adoção das políticas de crédito e de gasto privado que sustentaram taxas elevadas de crescimento da demanda nominal. A cada ciclo de expansão, a volúpia consumista dos americanos impulsionou a elevação do déficit em conta corrente e gerou demanda para os produtivistas chineses.
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Nos últimos cinco anos, o crescimento do consumo nos Estados Unidos decorreu mais da ampliação do endividamento das famílias, apoiado na valorização dos imóveis residenciais, do que da expansão da renda. O crescimento do consumo foi desconectado da evolução da renda e tornou-se cada vez mais dependente do endividamento apoiado na valorização fictícia do patrimônio financeiro e imobiliário.
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Assim, a economia americana atingiu o auge de um ciclo expansivo, turbinada pela inflação de ativos. Quando eclodiu a crise, as famílias - encalacradas entre a queda do preço dos imóveis e o aumento do serviço da dívida - trataram e ainda cuidam desesperadamente de reduzir o seu coeficiente de endividamento. Foi tempestiva e inédita intervenção do Federal Reserve e do Tesouro. À custa de uma generosidade "quantitativa" sem precedentes de seu balanço, o Fed impediu o colapso dos preços dos ativos originados em empréstimos (não só hipotecários) irrecuperáveis.
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Na outra ponta da economia globalizada, a estratégia mercantilista da China foi concebida para o crescimento rápido, amparado na expansão das exportações líquidas (enormes superávits comerciais) em conluio com o yuan desvalorizado, taxas de investimento elevadas e graduação tecnológica na indústria manufatureira. Assim, a despeito do modesto crescimento de seus rendimentos nos últimos ciclos de expansão, as famílias americanas usufruíram os benefícios dos ganhos de produtividade dos trabalhadores asiáticos. Não bastassem os ganhos reais que proporcionaram com suas manufaturas de baixo custo, os "exportadores" chineses passaram a destinar as reservas acumuladas para o financiamento do déficit em conta corrente dos parceiros consumistas, garantindo taxas de juros módicas para "bancar" a corrente da felicidade.
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Deflagrada a crise, os economistas da corrente principal entregaram-se às esperanças do "descolamento" da China. As recomendações aos chineses envolviam a mudança do eixo do seu celebrado dinamismo econômico: reduzir o peso das exportações na formação da taxa de crescimento do PIB e ampliar a participação do consumo. As sugestões para o cardápio de reformas do "modelo chinês" incluíam a valorização do yuan, medidas de proteção social para desestimular a "poupança" e aceleração do investimento público em setores intensivos em mão de obra, com o propósito de ampliar a massa de salários.
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O economista e sociólogo Huang Ho-Fung escreveu recentemente que a China reagiu com presteza à eclosão da crise. Lançou um programa de gastos públicos e de ampliação do crédito de US$ 570 bilhões, valor não desprezível. Os dados colhidos nos sete primeiros meses do programa mostram, segundo Huang, que apenas 20% dos recursos foram destinados aos gastos sociais. A fatia maior do dispêndio concentrou-se em dois elementos "tradicionais" de formação da renda no Império do Meio: 1) o investimento em infraestrutura (entre outras façanhas, a construção da maior rede de trens de alta velocidade do mundo) e 2) a expansão do crédito ao setor privado para fomentar o investimento na indústria manufatureira, já sobrecarregada com a capacidade ociosa construída no período anterior.
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Os dados do Peoples Bank of China mostram que o acelerado crescimento do PIB nos últimos dez anos afetou muito pouco a renda das famílias. Na verdade, os salários e o consumo reduziram sua participação na renda agregada. Em contrapartida, os lucros das empresas dobraram, entre 1997 e 2007, atingindo 23% do PIB. A "poupança" chinesa é fruto, sobretudo, da acumulação interna de lucros das empresas e pouco tem a ver com a frugalidade das famílias. As empresas chinesas, inclusive as estatais, escoradas no crédito barato avançado pelos bancos públicos realizam a parêmia de Kalecki: ganham o que gastam, enquanto os trabalhadores chineses gastam (quase tudo) o que ganham. Nada surpreendente para quem colocou as fichas no dinamismo das exportações.
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Nos próximos anos, a economia global vai enfrentar as delicadas questões suscitadas pelo desarranjo do modelo sino-americano. Entre elas, a mais importante é a dificuldade de mudar o rumo do desenvolvimento nos dois países. Os reformistas vão se deparar, de uma parte, com o livre-mercadismo consumista entranhado no metabolismo sócio-econômico e cultural da América. (Pesquisa da Universidade de Harvard informa: a maioria dos eleitores de Obama, com idade inferior a 30 anos, desaprova as propostas de maior regulamentação dos mercados financeiros.)
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Na outra ponta , a fábrica asiática não hesitará em despejar seus produtos no mercado mundial a preços de liquidação, sob o patrocínio do câmbio subvalorizado, reduções de preços e devoluções fiscais. Na ausência de coordenação global, a agressividade chinesa vai provocar nos países "perdedores" uma corrida para a mobilização do arsenal de salvaguardas: sobretaxas, desvalorizações competitivas e outras providências alfandegárias.
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Nos últimos cinco anos, o crescimento do consumo nos Estados Unidos decorreu mais da ampliação do endividamento das famílias, apoiado na valorização dos imóveis residenciais, do que da expansão da renda. O crescimento do consumo foi desconectado da evolução da renda e tornou-se cada vez mais dependente do endividamento apoiado na valorização fictícia do patrimônio financeiro e imobiliário.
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Assim, a economia americana atingiu o auge de um ciclo expansivo, turbinada pela inflação de ativos. Quando eclodiu a crise, as famílias - encalacradas entre a queda do preço dos imóveis e o aumento do serviço da dívida - trataram e ainda cuidam desesperadamente de reduzir o seu coeficiente de endividamento. Foi tempestiva e inédita intervenção do Federal Reserve e do Tesouro. À custa de uma generosidade "quantitativa" sem precedentes de seu balanço, o Fed impediu o colapso dos preços dos ativos originados em empréstimos (não só hipotecários) irrecuperáveis.
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Na outra ponta da economia globalizada, a estratégia mercantilista da China foi concebida para o crescimento rápido, amparado na expansão das exportações líquidas (enormes superávits comerciais) em conluio com o yuan desvalorizado, taxas de investimento elevadas e graduação tecnológica na indústria manufatureira. Assim, a despeito do modesto crescimento de seus rendimentos nos últimos ciclos de expansão, as famílias americanas usufruíram os benefícios dos ganhos de produtividade dos trabalhadores asiáticos. Não bastassem os ganhos reais que proporcionaram com suas manufaturas de baixo custo, os "exportadores" chineses passaram a destinar as reservas acumuladas para o financiamento do déficit em conta corrente dos parceiros consumistas, garantindo taxas de juros módicas para "bancar" a corrente da felicidade.
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Deflagrada a crise, os economistas da corrente principal entregaram-se às esperanças do "descolamento" da China. As recomendações aos chineses envolviam a mudança do eixo do seu celebrado dinamismo econômico: reduzir o peso das exportações na formação da taxa de crescimento do PIB e ampliar a participação do consumo. As sugestões para o cardápio de reformas do "modelo chinês" incluíam a valorização do yuan, medidas de proteção social para desestimular a "poupança" e aceleração do investimento público em setores intensivos em mão de obra, com o propósito de ampliar a massa de salários.
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O economista e sociólogo Huang Ho-Fung escreveu recentemente que a China reagiu com presteza à eclosão da crise. Lançou um programa de gastos públicos e de ampliação do crédito de US$ 570 bilhões, valor não desprezível. Os dados colhidos nos sete primeiros meses do programa mostram, segundo Huang, que apenas 20% dos recursos foram destinados aos gastos sociais. A fatia maior do dispêndio concentrou-se em dois elementos "tradicionais" de formação da renda no Império do Meio: 1) o investimento em infraestrutura (entre outras façanhas, a construção da maior rede de trens de alta velocidade do mundo) e 2) a expansão do crédito ao setor privado para fomentar o investimento na indústria manufatureira, já sobrecarregada com a capacidade ociosa construída no período anterior.
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Os dados do Peoples Bank of China mostram que o acelerado crescimento do PIB nos últimos dez anos afetou muito pouco a renda das famílias. Na verdade, os salários e o consumo reduziram sua participação na renda agregada. Em contrapartida, os lucros das empresas dobraram, entre 1997 e 2007, atingindo 23% do PIB. A "poupança" chinesa é fruto, sobretudo, da acumulação interna de lucros das empresas e pouco tem a ver com a frugalidade das famílias. As empresas chinesas, inclusive as estatais, escoradas no crédito barato avançado pelos bancos públicos realizam a parêmia de Kalecki: ganham o que gastam, enquanto os trabalhadores chineses gastam (quase tudo) o que ganham. Nada surpreendente para quem colocou as fichas no dinamismo das exportações.
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Nos próximos anos, a economia global vai enfrentar as delicadas questões suscitadas pelo desarranjo do modelo sino-americano. Entre elas, a mais importante é a dificuldade de mudar o rumo do desenvolvimento nos dois países. Os reformistas vão se deparar, de uma parte, com o livre-mercadismo consumista entranhado no metabolismo sócio-econômico e cultural da América. (Pesquisa da Universidade de Harvard informa: a maioria dos eleitores de Obama, com idade inferior a 30 anos, desaprova as propostas de maior regulamentação dos mercados financeiros.)
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Na outra ponta , a fábrica asiática não hesitará em despejar seus produtos no mercado mundial a preços de liquidação, sob o patrocínio do câmbio subvalorizado, reduções de preços e devoluções fiscais. Na ausência de coordenação global, a agressividade chinesa vai provocar nos países "perdedores" uma corrida para a mobilização do arsenal de salvaguardas: sobretaxas, desvalorizações competitivas e outras providências alfandegárias.
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