A Internacional

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quarta-feira, agosto 08, 2007

Crimes contra a Humanidade (1) - Hiroshima e Nagasaki

A morte em dias de céu azul e triste: um testemunho pessoal

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Por JUN IWATA
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Jun Iwata é professor de inglês na Mukogawa Women's University em Nishinomiya, Japão; doutorando em literatura americana, e está escrevendo sua tese sobre Saul Bellow
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[Tradução: Eva P. Bueno]
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Quando uma bomba atômica foi jogada na cidade de Hiroshima e explodiu a uma altura de 570 metros acima do solo, eu tinha seis anos de idade, e morava na prefeitura de Yamaguchi, que fica ao lado de Hiroshima. Como se sabe, todos os homens adultos daquelas cidades tinham sido forçosamente recrutados e despachados para outros lugares para participar naqueles últimos dias de desesperada luta; por esta razão, uma grande parte das vítimas em Hiroshima eram bebês, crianças, adolescentes, donas de casa, e velhos. 140.000 pessoas foram mortas instantaneamente pela bomba, e o número dos mortos se calcula que eventualmente totalizou 250.000 (de acordo com o relatório oficial feito pela cidade de Hiroshima em 1950). Centenas de feridos morreram anualmente de doenças causadas pela radiação nos vários anos seguintes.
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No dia 6 de agosto de 1945, às 8:15 da manhã, uma enorme bola de fogo, muito mais brilhante que o sol, com a extrema temperatura de calor de quase 10 milhões de graus Celsius no seu centro, e com a pressão explosiva várias centenas de milhares de vezes mais forte que a pressão normal do ar, explodiu e arrasou a parte central de Hiroshima. A explosão aplainou a cidade de Hiroshima em um raio de 5 km, matando instantaneamente todas as criaturas vivas dentro de um raio de 8km. Onde os raios de calor bateram diretamente, a superfície de tudo derreteu no momento – madeira, cimento, aço, e até mármore – se tornaram líquidos com o extremo calor. Algumas pessoas simplesmente evaporaram, deixando nas calçadas ou nos degraus de pedra somente suas sombras, a única marca da sua efêmera existência neste mundo. Algumas pessoas foram torradas como carvão. Algumas cambalearam até os rios com as peles dos seus rostos despencando, quase caindo completamente; outros se arrastaram com a pele das suas costas caindo aos pedaços. Quase todos aqueles feridos morreram assim que chegaram a um rio e beberam da água. Milhares de corpos inchados flutuaram rio abaixo, e este ficou literalmente coberto de cadáveres que se tocavam, ombro a ombro.
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Nós soubemos mais tarde, através de vários meios, sobre estes incidentes infernais e sobre todas aquelas mortes. Eu soube sobre alguns destes horrores pessoalmente, porque os vi com meus próprios olhos. Mesmo depois de tantos anos eu não posso olhar para aqueles lugares onde aconteceram aquelas coisas horríveis sem sentir uma dor no coração. O que eu sinto é descrito muito bem num trecho de um famoso romance baseado em fatos, Chuva Negra, de autoria de Masuji Ibuse:
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Eu notei que estava chegando ao lugar que eu nunca mais queria ver. Havia um poço com água usada para combater fogo, bem ao lado da estrada, e três mulheres estavam flutuando na água do poço, mortas, quase nuas, com as faces voltadas para baixo, mas com a cintura acima da superfície. Das nádegas de uma dela, os intestinos haviam saído em uma extensão de mais de um metro, e estavam inchados como um tubo fino que tivesse sido enchido de ar até chegar a uns 10 cm de diâmetro. Assim como se fossem um balão circular em cima da água, os intestinos da mulher se moviam ao vento pra lá e pra cá.
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Quando eu tinha pouco mais de 6 anos de idade, eu também fui forçado a ver uma cena similar, a confrontar um horror como este com meus próprios olhos. Mas aquele incidente aconteceu muito mais tarde que aquelas tragédias em Hiroshima e Nagasaki.
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Quando as atrocidades infernais aconteceram em Hiroshima, eu era um aluno de primeiro ano primário, e estava brincando no pátio, mas perto da nossa casa de refúgio para evitar ser atacado por balas de metralhadora vindas do ar. Naquele tempo, e já por vários meses, muitos aviões B-29 circulavam, com grandiosidade e mesmo solenidade, acima das nossas cabeças dia e noite, porque as forças armadas japonesas tinham perdido o controle do ar há muito tempo. Por mais ou menos quatro meses depois de minha entrada na escola primária, nós éramos avisados por sirenes quase todos os dias, e tínhamos que voltar para nossas casas imediatamente, porque um ataque aéreo era iminente.
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E finalmente, aproximadamente um mês antes do ataque a Hiroshima, no meio de uma noite nós tivemos um grande ataque aéreo com bombas incendiárias. O nosso pai, que era o capitão de uma balsa cargueira, estava sempre de plantão. Os membros da nossa família – minha mãe com um bebê amarrado nas costas, o meu irmão mais velho e eu – nos refugiamos rapidamente em uma montanha localizada a cinco minutos de distância a pé, da nossa casa. As forças armadas japonesas tinham um modesto posto de defesa contra aviões nesta montanha.
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Quando nós chegamos ao largo caminho de terra, depois de subirmos um trecho íngreme cheio de vegetação, nós fomos subitamente jogados al longe por um vento muito forte, e eu me encontrei caído de costas contra a minha mochila. Sem saber o que tinha nos acontecido, eu olhei à minha volta e vi que meu irmão estava tentando lutar contra o fogo na sua roupa e nos seus braços, e minha mãe desesperadamente tentando ajudá-lo. Estranhamente, naquele momento me pareceu que os fogos no meu irmão pareciam que o estavam acariciando. Eu não pude mover-me; calmamente olhei para cima e vi que as grossas folhas de verão estavam devagarinho começando a pegar fogo acima da minha cabeça, contra o céu escuro. Eu não podia ouvir nada. Eu conscientemente pensei que tudo me fazia sentir como se eu estivesse muito tranqüilamente deitado na minha cama.
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O que aconteceu foi que um grande grupo de bombas incendiárias tinha caído a cinco metros de nós. Nós soubemos disto quando re-visitamos o lugar no outro dia, curiosos para saber exatamente o que tinha acontecido. Nós ainda pudemos ver um buraco enorme e fundo no meio da estrada. Esta foi a minha primeira experiência de quase morrer, e eu não tive medo.
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Aquela noite, nós assistimos, cobertos pelas grandes árvores, uma enorme formação de aviões B29 flutuando lindamente nas luzes dos refletores, de vez em quando despejando pontinhos luminosos de bombas que saíam das suas fuselagens. As bombas caíam ao chão fazendo um rastro com linhas horizontais brancas como aquelas de uma página de caderno iluminado contra o negro do céu da noite.
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A nossa casa, localizada ao pé da montanha, pegou fogo imediatamente e queimou num instante. Eu, como era um menino curioso, vi a minha casa queimando e achei que ela era bonita, com suas linhas brancas e claras mostrando a armação da nossa casa como uma pintura desenhada a fogo. Eu não estava com medo, nem triste, porque todos os vizinhos também perderam suas casas no mesmo ataque aéreo.
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Depois deste incidente, nós recebemos ordens de nos juntarmos todos em uma casa de refúgio em grupos de duas ou três famílias, e desde então passamos a viver juntos, compartindo os poucos quartos. Para mim, foi uma alegria morar com meus amigos da vizinhança e seus pais debaixo do mesmo teto, embora nós tivéssemos só um pouco de comida racionada.
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E assim que começamos a viver nestas circunstâncias, o fim do mundo veio no dia 6 de agosto em Hiroshima. Na tarde ou no começo da noite nesse mesmo dia, vários dos pais e um par de velhinhos se juntaram em um canto de uma sala e começaram a falar animadamente, em voz baixa, sobre alguma coisa muito séria. Como eu era muito curioso, eu fui para perto deles, e escutei do que estavam falando.
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Tudo o que eu pude ouvir foi que uma nova e horrível bomba tinha sido jogada em Hiroshima aquela manhã, e que um enorme número de pessoas tinha morrido imediatamente. Mas, de acordo com algumas informações, o alvo inicial teria sido a nossa própria cidade, Shimonoseki, ou Kokura, uma cidade vizinha separada da nossa por um canal marítimo. Ambas cidades têm muitas fábricas e uma população considerável, além de pessoal das forças armadas.
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Então, nós pensamos, muito provavelmente logo o inimigo vai jogar outra bomba em nós ou em Kokura. Nos disseram que a nova bomba parecia um balãozinho oscilando e descendo vagarosamente no céu limpo, e de repente o balãozinho virou um sol brilhante que queimou e explodiu tudo. Então alguém chamou esta bomba de “bomba-balão”. Todos os que estavam ouvindo assentiram com a cabeça, concordando, porque nós, mesmo as crianças, sabíamos que as forças aliadas e nós japoneses estávamos competindo para inventar uma bomba-balão muito destruidora. E com esta informação sobre Hiroshima, nós tínhamos que admitir que tínhamos perdido a competição. Assim, nós também pensamos, agora é só uma questão de tempo para todos nós morrermos juntos, talvez dentro de um ou dois dias.
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Eu memorizei o nome, “bomba balão” e queria muito ver uma caindo do céu azul. Eu entendia muito bem que o momento que eu visse uma bomba balão seria também o momento da minha morte, mas eu não sentia nenhum medo. Naquele tempo, todos os jornais disponíveis insistiam que nós, cem milhões de japoneses, devíamos lutar contra o inimigo mau até que último de nós estivesse morto, se as forças inimigas descessem na nossa sagrada ilha pátria. E todos os japoneses pareciam estar de acordo com esta idéia, incluindo eu mesmo! Eu me lembro que eu não tinha medo de morrer, desde que eu morresse com meu pai e minha mãe, com meu irmão e com todos os nossos conhecidos, todos japoneses. Eu corri para a janela mais próxima através da qual eu podia olhar para o céu, e eu fiquei lá um longo tempo, esperando que o balão aparecesse. Eu ainda me lembro perfeitamente e nunca esquecerei este momento, em que eu pensei pela primeira vez que a minha morte estava para chegar em um instante.
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A partir do dia do bombardeio de Hiroshima, a nossa conversa na comunidade se concentrou em quando e como nós seríamos mortos. Nós não tínhamos nenhuma dúvida que seríamos mortos, mas quando e como? Provavelmente com uma outra bomba balão? Com metralhadoras ou com espetadas de baionetas? A maneira que eu mais detestava era ser morto com uma baioneta, que eu imaginava que me daria uma dor terrível. Mas, mesmo naqueles momentos, eu devo confessar que tinha a esperança que houvesse uma pequena possibilidade que nós pudéssemos sobreviver nem que fosse pela misericórdia do vencedor, ou por qualquer outro golpe de sorte. Entretanto, aquela leve esperança desapareceu completamente logo, apenas 3 dias depois da atrocidade em Hiroshima.
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Outra bomba atômica foi jogada em Nagasaki, matando 73.884 pessoas instantaneamente, e ferindo 74.909 seriamente. A cidade de Nagasaki tinha fábricas pesadas, tais como estaleiros. Entretanto, Nagasaki também era conhecida como um lugar com muitos cristãos e com lindas igrejas cristãs. Assim como Hiroshima, Nagasaki também está localizada relativamente perto de nossa cidade. Embora eu era somente uma criança, quando eu ouvi as notícias da nova bomba atômica jogada em Nagasaki, eu pensei comigo mesmo, “Por que Nagasaki? Já chega disto! As Forças Aliadas devem estar planejando eliminar todos os japoneses, exatamente como o nosso governo e todos os nossos jornais dizem”. Mais tarde, ouvimos dizer que a segunda bomba atômica deveria ter sido jogada em Kokura, a cidade vizinha à nossa, a não ser que o tempo não estivesse bom para o bombardeio. E o tempo em Kokura estava ruim naquele dia. Nós fomos salvos pelo mau tempo.
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De fato, na ocasião do ataque atômico a Nagasaki, com os mesmos horríveis resultados que em Hiroshima, todos os adultos na nossa comunidade ficaram como que paralisados. Mas, na verdade, o incidente em Nagasaki nos impressionou tão profundamente que todos nós japoneses que passamos por aquela experiência ainda nos lembramos e cantamos uma canção chamada “Os sinos das igrejas de Nagasaki”.
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A canção conta a história verdadeira de um doutor de radioterapia, e cristão devoto, que tinha sido batizado com o nome de Paul. Ele foi ferido seriamente no ataque quando ele estava trabalhando no hospital. No mesmo instante, sua jovem esposa, também cristã, foi morta na cozinha da casa, e dela só restou o seu amado rosário, que ela usava no pescoço. O doutor, também muito doente, embora ele tivesse perdido sua esposa em um dia de céu limpo, ainda tentou e continuou trabalhando o mais que pôde cuidando dos outros feridos pela bomba. Ao mesmo tempo, ele tinha que cuidar dos seus filhos – dos filhos dele e da esposa – um menino e uma menina, que haviam sobrevivido ao bombardeio. Ele morreu não muito tempo depois do ataque atômico, devido a demasiada exposição a radiação e devido ao excesso de trabalho, e deixou sozinhos os dois filhos. Sua esperança, a canção diz, é ir para o céu e encontrar sua adorada esposa que morreu tão jovem, respondendo ao chamado do seu Deus. Os sentimentos tristes e profundos deste doutor estão cristalizados na letra de uma canção dedicada a ele num filme de 1950, feito para comemorar sua vida de devoção. A canção diz, “Eu nunca soube antes, que somente ao ver um céu límpido eu poderia me sentir tão triste e solitário. Minha amada esposa se foi, deixando para nós somente o seu rosário; ela está lá, no límpido céu”. Esta letra então certifica que, de fato, as duas bombas foram jogadas em dias de céu azul.
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O fim da guerra chegou abruptamente, com a declaração feita pelo nosso sagrado imperador através das ondas vacilantes e chiadas do rádio, no dia 15 de agosto, novamente em um dia de sol. De repente, nós todos estávamos livres para irmos mais uma vez brincar. E assim, imediatamente voltamos ao porto para nadar todos os dias, como o fazíamos antes que os ataques aéreos se tornaram muito freqüentes e perigosos.
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Havia uma pequena enseada usada pelos pescadores, e protegida das ondas mais fortes por uma amarração. Dentro da estreita enseada, a água era calma. Lá fora era como um rio rápido e caudaloso, porque o nosso estreito canal marítimo é conhecido por sua corrente rápida e por sua importância no tráfego marítimo. Portanto, centenas de minas tinham sido colocadas e espalhadas pelo canal. Mas, desde que nós crianças ficássemos dentro da amarração, era seguro e divertido. O único problema era que este pequeno porto que parecia um poço sugava para dentro tudo o que passava a mar aberto e trazia para dentro do nosso refúgio.
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O que acontecia então quando nadávamos era que muitos cadáveres inchados flutuavam dentro da amarração durante a maré alta. Eles vinham pela entrada, quase todos marinheiros, vinham entrando com as caras pra baixo, como se estivessem envergonhados de si mesmos; quase todos os corpos estavam nus, e eram de homens jovens. Quando eles chegavam perto de nós, nós nadávamos pra longe e ficávamos a observá-los em silêncio. Com o tempo, mais e mais cadáveres começaram a vir ao nosso espaço protegido, e então gradativamente o número de nadadores diminuiu. Eu ainda acho muito esquisito, mas eu nunca vi ninguém cuidando daqueles corpos, embora eu sei que muitas pessoas os viram; havia muitas casas de pescadores viradas para a entrada do porto, com as janelas abertas em direção ao mar. Aquelas pessoas devem ter estado muito ocupadas cuidando da própria vida naqueles dias, logo depois do fim da guerra. Isto deve explicar porque ninguém se importava com os corpos dos mortos.
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Uma manhã, eu fui nadar mais cedo que de costume. Fui sozinho, usando somente minhas cuecas e sandálias de madeira. Eu estranhei, porque não havia nenhum outro menino para nadar comigo, e não havia nenhum pescador por perto. Ninguém. Quando eu estava a ponto de mergulhar na água, eu vi o corpo de um jovem vindo pela entrada. Ele estava de bruços como os outros que eu tinha visto antes, com as costas acima da cintura fora da água devido ao inchaço provocado pelo gás no seu corpo. Eu fiquei observando-o por um tempo, sentindo-me um pouco envergonhado, porque eu achava que tinha a obrigação de notificar alguém para que o corpo do pobre rapaz fosse cuidado. Eu me lembro de ter ficado em pé, e tentado pensar no que fazer, porque eu era o primeiro a encontrar o corpo desta vez. Eu tinha que fazer alguma coisa.
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Então de repente eu ouvi um som de uma batida vindo das costas do cadáver, mas eu não pude ver nada. Em seguida, ouvi o barulho de uma pedra batendo contra a água; eu conhecia aquele som muito bem. E então eu ouvi o horrível som de uma pedra batendo contra as costas do homem morto; eu olhei e vi a pedra afundando no corpo, deixando um buraco feio, uma abertura, bem no meio das costas.
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Eu não podia acreditar! E um segundo mais tarde, outra e mais outra e mais outra pedra, todas atiradas com precisão, atingindo o corpo, despedaçando ainda mais aquela pele já tão frágil. Eu fui subitamente tomado de uma raiva extrema, e fiquei quase louco, começando a correr por todo lado, tentando agarrar este invisível atirador de pedras. Eu não me importava naquele momento – ou melhor, eu esqueci – como eu era pequeno e não sabia brigar. Para minha tristeza, eu vi que não podia nem saber direito de onde vinham as pedras. Elas foram todas atiradas muito rapidamente. Eu procurei e procurei por todos os cantos e esconderijos. Eu queria tanto agarrar quem estava fazendo uma coisa tão horrível. De repente, a saraivada de pedras parou tão abruptamente como tinha começado. Eu vi que não podia fazer nada, e não podia pedir a ajuda de ninguém. Cabisbaixo, comecei a arrastar meus pés em direção a minha casa.
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Eu certamente senti, naquele momento, que uma parte inocente e importante de meu ser se havia perdido para sempre naquele dia quando eu vi o jovem morto sofrendo sua última humilhação. De volta para casa, eu aos poucos entendi que minha extrema raiva ao atirador de pedras era a mesma raiva contra o que tinha acontecido em Hiroshima e Nagasaki. Deve ter havido alguma coisa muito errada e má escondida por trás de todas estas misérias, incluindo minha própria morte. Foi um tipo de revelação muito triste para mim, mas naquele momento, eu não tinha uma consciência clara, ou uma idéia clara do que fazer com a raiva que eu tinha acabado de reconhecer. Eu tinha quase sete anos de idade, naquele dia, sessenta anos atrás.
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Revista Académica nº 51 2005 Agosto
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Uma brisa de Hiroshima
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Akira Kibi é médico na cidade de Kobe, ao sul de Tóquio. Ele é um ardente pacifista, admirador da natureza, e participante da vida da sua comunidade na cidadezinha de Suita. É membro de vários fóruns na região de Osaka em que se discutem maneiras de avançar a causa da paz e da compreensão entre os povos. Já foi premiado várias vezes em concursos de discursos bilingües regionais e nacionais, e viaja a outros países sempre que tem a oportunidade, para conhecer de perto as pessoas, e saber quais são os seus problemas e sonhos.
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[Tradução de Eva P. Bueno]
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Uma brisa suave refrescou meu rosto e meu pescoço e me fez sentir-me bem. Eu estava em pé por um momento, ao sol, no verão de 2002, suando e lendo um juramento esculpido numa pedra no Parque Memorial da Paz de Hiroshima.[1] A inscrição dizia:
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Nunca mais Hiroshima, nunca mais Nagasaki. Nunca mais repetiremos a
Loucura de trazer tal sofrimento a qualquer povo deste planeta.
Então, por favor,
Descansem em paz.
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Nesta inscrição não havia nenhuma menção de repugnância ou de vingança. A mensagem é clara: “Nunca mais Hiroshima, nunca mais Nagasaki veremos em qualquer nação deste planeta enquanto houver humanidade”. Infelizmente, a frase “Lembrem-se de Pearl Harbor” foi repetida em um sentido diferente quando houve a crise de onze de setembro, enquanto que a frase “Nunca mais Hiroshima, nunca mais Nagasaki”, não é repetida suficientemente no mundo nos últimos 60 anos. Há um grande contraste entre “Lembrem-se de X”, e “Nunca mais Y”. quando expressados como uma determinação do povo enlutado quando este povo faz uma oração por aqueles que pereceram em uma tragédia humana.
A bomba lançada sobre Hiroshima recebeu o nome de Little Boy (“Garotinho”, em português). Ela media 4 metros e 25 centímetros de comprimento e pesava 4.500 quilos. Sua carga nuclear era composta de urânio e devia explodir ao chegar a aproximadamente 565 metros do solo. A energia liberada pela bomba era semelhante a uma carga de 20 mil toneladas de TNT. Quando atingiu seu alvo, um furacão de fogo arrasou a cidade, e o que se seguiu foi o caos: a cidade destruída, centenas de milhares de pessoas feridas, cobertas de vidro e madeira ou com seus corpos queimados. Elas não tinham a quem recorrer, já que suas casas foram destruídas, bem como a de seus conhecidos, e mesmo os hospitais haviam sido danificados e não tinham condições para atender à população. Faltavam médicos, enfermeiros e remédios. Mortos também jaziam pelas ruas, e o cheiro da cidade era insuportável.
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Era a visão do apocalipse, visão da completa devastação, a sua magnitude colossal mostrada em posters, objetos ou fragmentos em exposição fazem ao visitante lembrar daqueles que pereceram. Eu me senti tomado de forte emoção. Aí se encontram marmitas transformadas em bronze, uniformes e bolsas escolares em pedaços, e os inumeráveis objetos desfigurados que tinham sido usados ou carregados por aqueles que morreram na explosão. Homens, mulheres, meninos, meninas, avós, tios, tias, amigos, todos morreram, não importando se eram civis ou militares, japoneses ou estrangeiros. Há um enorme poster mostrando as milhas e milhas de destroços que parecem um tapete de cinzas cobrindo as colinas e serpenteando até chegar às montanhas ao fundo.
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Havia uma teoria, que foi publicada pela primeira vez no Washington Post de 8 de agosto de 1945, que o Dr. Harold Jacobson, um dos membros do Projeto Manhattam, teria dito que nos próximos 75 anos nenhuma árvore, ou mesmo uma erva daninha cresceria nesta terra de Hiroshima. Felizmente, seu cálculo foi provado cientificamente errado. Mas é compreensível que ele tenha feito tal previsão: ao olhar as fotos de Hiroshima tiradas alguns dias depois da explosão da bomba eu também tive a impressão que a devastação tinha sido tão imensa que qualquer um que a tivesse testemunhado teria ficado impressionado ao ponto de concluir que o que a imagem mostrava era a destruição daquela terra por um longo tempo.
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Devemos também observar que neste desastre, o ponto zero se expandiu não só em termos de tamanho, mas também em termos de tempo. As mortes foram contadas: havia aproximadamente 350.000 pessoas, civis e militares, na cidade de Hiroshima no momento do bombardeio. Entretanto, o número de vítimas se espalhou além da destruição imediata da cidade, com os seus efeitos posteriores, alcançado por volta de 140.000 mortes até o fim de 1945. Até o ano de 2003, nós ainda tivemos 87.500 pessoas, descendentes das vítimas originais, que ainda sofriam os efeitos da bomba. Isto, repito, no ano de 2003, 58 anos depois do momento da explosão.
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O que passou pela mente das pessoas quando Hiroshima e Nagasaki foram bombardeadas? Eu acho que o bombardeiro foi uma coisa tão enorme que ultrapassou a dimensão humana, como se fosse um tipo de aviso à humanidade, sobre a estupidez deste desastre feito pela própria mão humana. As pessoas ficaram chocadas demais, eu acho, para terem a chance de entreter qualquer idéia de vingança. O seu desejo mais genuíno parece ter sido de voltar, depois que elas se recuperaram desta experiência incrível, e enfatizar que nenhuma nação jamais teria que passar por tal catástrofe, por razão alguma. O que estava em jogo, com a chegada da era nuclear, era a sobrevivência dos seres humanos como espécie, independentemente de ideais ou filosofia de qualquer grupo ou nação.
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Portanto, Hiroshima é simbólica não só da devastação da guerra, mas também da incerteza da sabedoria humana, principalmente da ciência e da tecnologia. Estes dois indispensáveis pilares do conhecimento humano, sozinhos, não podem conduzir a humanidade à tolerante co-existência e à vida integrada ao respeito pela natureza. Nós precisamos de algo mais que simplesmente a desenfreada ciência e tecnologia para chegar à sobrevivência das nações e a tornar significativa a vida das pessoas. E este algo mais pode ser o respeito pela natureza, ou uma vontade benevolente no universo, ou um poder de curar: não importa realmente em quê você acredita, desde que seja aquilo que nos dá os elementos básicos para a vida e sua continuação.
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Revista Académica nº 51 2005 Agosto
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