A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

quarta-feira, abril 18, 2007

História da Saúde no Trabalho:
3. O Período de 1926-1974: A Modernização Bloqueada. 3.1. Nacionalismo e Corporativismo (1926-1958)

* Luís Graça (1999)

1. Introdução

Numa perspectiva de história política e institucional, podemos apontar os seguintes marcos fundamentais deste longo período de quase meio século:

  • A Ditadura Militar, de 1926 a 1933, ou seja, antes e depois da entrada de Oliveira Salazar para o ‘Governo da Nação’ (em 1928, como ministro das Finanças, e em 1932 como presidente do Conselho);
  • 1933 é porventura o ano mais emblemático do Estado Novo, o ano em que são aprovados a ‘Constituição Corporativa’ e o Estatuto do Trabalho Nacional, e criados a Polícia de Vigilância do Estado (antecessora da PIDE), o Secretariado da Propaganda Nacional e os Tribunais Militares Especiais;
  • No âmbito da Igreja e das organizações de leigos católicos, 1933 é também o ano da institucionalização da Acção Católica Portuguesa e da extinção do Centro Católico Português (donde provinham Salazar e Cerejeira);
  • 1933-1936 corresponde à fase de consolidação do Estado Novo : em 1936 começa a Guerra Civil de Espanha e, em 1937, Salazar escapa ileso a uma atentado à bomba;

  • O apogeu do regime fascistas português (até 1940, com o início da Segunda Guerra Mundial; momento alto do regime com a Exposição do Mundo Português e as Comemorações do Duplo Centenário da Fundação da Nacionalidade, em 1140, e da Restauaração, em 1640);

  • O período de crise e dificuldades resultantes da Segunda Guerra Mundial e, no imediato pós-guerra, do derrube dos principais regimes fascistas europeus (1945-1949);

  • A fase de reestabilização através da integração de Portugal no mundo dual da 'Guerra Fria’ (1949-1961) (1958: campanha do general Humberto Delgado; 1959: adesão à EFTA; 1960: adesão ao FMI; 1961: início da guerra colonial em Angola, perda dos territórios de Goa, Damão e Diu);

  • A longa agonia do regime salazarista (1961-1968);

  • E, por fim, o marcelismo, tentativa tardia e falhada de modernização do regime ditatorial, e a sua desagregação, devido à acumulação de tensões contraditórias de natureza endógena e exógena, terminando com o golpe militar e, depois, com a Revolução de 25 de Abril de 1974.

Se nos colocarmos na perspectiva da história económica e social, mais consentânea com uma abordagem sociológica, podemos considerar quatro subperíodos ou fases (Nunes, 1994, p. 306):

  • A primeira fase da Ditadura Militar (até 1928, quando Salazar assume a pasta das Finanças); caracteriza-se por uma clara ausência de perspectiva estratégica, traduzida, aliás, no sucessivo derrube dos líderes militares que derrubaram a República (Mendes Cabeçadas, Costa Gomes, etc.);
  • A opção pelo saneamento e estabilidade financeira e pela pretensa terceira via (alternativa ao capitalismo reinante e ao socialismo emergente) de organização e crescimento da economia, "corporativista, conservadora, semiautárcica e colonialista" (Esta fase vai até à promulgação da Lei do Fomento e Reorganização Industrial, em 1945);
  • A fase de "indecisão, tendências e interesses contraditórios e relativo bloqueamento" (até 1959, ano da adesão à EFTA);
  • E, por fim, o triunfo das teses industrialistas (protagonizadas por Ferreira Dias e Marcelo Caetano), conduzindo a um esforço de industrialização e de integração na economia do mundo capitalista, "de acordo com um modelo de cariz predominantemente monopolista" (até 1974).

2. O Subperíodo de 1928-1958: Nacionalismo e Corporativismo

De facto, em 1926 a República é derrubada ou, como lhe chama Nunes (1994, p. 305), "a ‘Nova República Velha’, última fase de um regime demoliberal que, com algumas nuances, continuou a tradição 'liberal oligárquica' característica de um capitalismo pouco desenvolvido". E em 1933 é aprovada a Constituição Política, em vigor até 25 de Abril de 1974.

O Estatuto do Trabalho Nacional, inspirado na Carta del Lavoro do fascismo italiano, vem entretanto consagrar a ideia-força de solidariedade entre a propriedade, o capital e o trabalho. O princípio da solidariedade (art. 11º do Estatuto) articulava-se com a exigência de paz social (art. 5º) e implicava a ideia de colaboração interclassista, um eufemismo para designar a total subordinação do trabalho aos interesses do capital monopolista:

  • "O trabalhador (...) é colaborador nato da empresa (...) e associado aos [ seus] destinos (...) pelo vínculo corporativo" (art. 22º);

  • Em todo o caso, afirmava-se inequivocamente o primado do capital sobre o trabalho: "O direito de conservação ou amortização do capital da empresa e do seu justo rendimento são condicionados pela natureza das coisas, não podendo prevalecer contra ele os interesses ou direitos do trabalho" (art. 16º) (Itálicos nossos).

Como consequência lógica, a greve e o lock-out passam a ser punidos (Decreto-Lei nº. 23 870, de 18 de Maio, diploma que só viria a ser revogado em 1974!). É dissolvida a Confederação Geral do Trabalho (CGT), de tendência anarco-sindicalista (criada em 1919).

Os restantes diplomas, relevantes no âmbito do direito do trabalho e que irão perdurar até aos anos 60 e 70, decorrem igualmente da lógica dos princípios constantes da Constituição de 1933 e do Estatuto do Trabalho Nacional (Fernandes, 1994, pp. 29):

  • Regime da duração do trabalho (D.L. nº 24401, de 24 de Agosto de 1934, em vigor até 1971, com alterações parciais);

  • Regime dos acidentes de trabalho e doenças profissionais (Lei nº 1942, de 27 de Julho de 1936, só revogada em 1965);

  • O primeiro regime jurídico específico do contrato individual de trabalho (Lei nº 1952, de 10 de Março de 1937, em vigor até 1967);

  • Regime jurídico da contratação colectiva (D.L. nº 36173, de 6 de Março de 1947, em vigor até 1969, com alterações).

Na opinião (algo controversa) de Fernandes (1994, p. 30), a longevidade destes diplomas não poderia ser explicada apenas "pela intrínseca fixidez do ordenamento económico-social em que se filiavam". Pelo contrário, se "as leis dos anos trinta e quarenta puderam manter-se próximas da actualidade normativa, por que eram já de início relativamente avançadas" e, ao mesmo tempo, congruentes " com a lentidão do desenvolvimento das estruturas económicas e sociais entre as décadas de 30 e 60". O aggiornamento da legislação laboral só se verificaria a partir de 1965.

Numa leitura mais sociológica, como a proposta por Lima (1982, p. 1308), o período da 1ª fase do salazarismo, até finais da década de 1940, seria marcado sobretudo pela racionalização autoritária e a implantação tardia e lenta do taylorismo, enquanto se agravavam as condições de trabalho na indústria:

  • Intensificação dos ritmos de trabalho;

  • Diminuição dos salários reais;

  • Prolongamento do tempo de trabalho;

  • Aumento da sinistralidade laboral;

  • Repressão do movimento operário e sindical (que , de resto, é praticamente aniquilado depois da falhada greve geral revolucionária contra a ‘fascização dos sindicatos’ , em 18 de Janeiro de 1934), etc..

Entretanto, a Constituição Política de 1933 tinha consagrado o princípio segundo o qual as condições de trabalho deveriam atender às necessidades de higiene física e moral e à segurança do trabalhador (art. 25º).

Não admira, por isso, que este período corresponda a um completo vazio legislativo em matéria de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho (abreviadamente, SH&ST), com excepção do já referido diploma de 1936 (Lei nº. 1942, de 27 de Julho) que veio reformular o regime jurídico de protecção contra os acidentes de trabalho e as doenças profissionais.

Por outro lado, não deixa de ser sintomático que uma grande parte das convenções internacionais do trabalho adoptadas pela OIT durante o longo período da Ditadura Militar (1928-1932), Estado Novo salazarista (1933-1968) e do Estado Social marcelista (1969-1974) só tenham sido ratificadas por Portugal muitos anos depois, algumas mesmo já depois da instauração da democracia em 25 de Abril de 1974.

Recorde-se que, sobretudo depois da II Guerra Mundial, Portugal seria periodicamente condenado pela OIT devido ao seu sistema corporativo e ditatorial de organização dos trabalhadores e das relações colectivas de trabalho.

Foi o caso, por exemplo, das convenções nºs:

  • 81 (Inspecção do trabalho, 1947)

  • 98 (Direito de organização e negociação colectiva, 1949)

  • 87 (Liberdade sindical e protecção do direito sindical, 1948)

  • 177 (Política social - objectivos e normas de base, 1962)

  • 120 (Higiene e segurança no comércio e escritórios, 1964)

  • ou 127 (Peso máximo das cargas transportadas por um só trabalhador, 1967)

que só foram ratificadas em 1962, 1964, 1977, 1981, 1983 e 1984, respectivamente.

Se nos restringirmos à saúde, enquanto vertente essencial da política de protecção social, verificamos que, também ela, foi claramente marcada, até meados da década de 1960, pelo "espartilho ideológico e político" do salazarismo (Campos, 1983; Lopes, 1987).

Numa primeira fase, a que Campos (1983) chama caritativo-corporativista (1937-1945), a política de saúde caracterizar-se-ia por:

  • Uma clara não-intervenção do Estado;

  • A desoficialização dos Hospitais Civis de Lisboa e dos hospitais universidade de Coimbra (os únicos grandes hospitais públicos do país);

  • A desvinculação do pessoal; (iv) A intolerância, a discriminação sexual e o obscurantismo ideológico;

  • A reabilitação da noção de "acto misericordioso" e do papel ideológico e assistencial das misericórdias (Graça, 1996 e 1997).

Por outro lado, e na ausência de quaisquer esquemas de seguro de saúde/doença continuava a prevalecer a caridade individual ou organizada, ou então a repressão, pura e simples:

  • "A obrigação de prestar assistência é ao mesmo tempo dever cívico ou de justiça social e preceito religioso de caridade" (sic), competindo ao Estado "promover e impor, mesmo que coactivamente, o dever social de prestar" essa assistência (D.L. nº 32255, de 12 de Setembro de 1942, cit. por Lopes, 1987, p. 103).
  • "Nesta selva social (sic) incumbe ao Inquérito [ Assistencial, criado pelo D.L. nº 31666, de 22 de Novembro de 1941] distinguir os que recorrem à caridade pública por extrema necessidade ocasional, por invalidez ou desemprego (…), dos vadios, que por vício recusam todo o trabalho, ou dos vagabundos, que, por capacidade diminuída ou viciosa inadaptabilidade, enjeitam os quadros familiares ou profissionais" (Do preâmbulo do D.L. nº 35108, de 7 de Novembro de 1945).

Por fim, era grande a dispersão dos meios de acção e das instâncias de direcção e controlo: havia duas direcções-gerais (saúde e assistência), fazendo parte duma obscura Subsecretaria de Estado da Assistência Social, criada em 1940, pelo D.L. nº 30 692, de 27 de Agosto, e dependente por sua vez do tenebroso Ministério do Interior (que também tutelava a policía política).

Entretanto, e ainda em 1935, tinha sido aprovado o Regime Geral de Previdência (Lei nº 1884, de 16 de Março):

  • Segundo Ferreira (1995, pp. 446-447), esta lei "dava reconhecimento às caixas de previdência e às caixas de reforma ou de previdência, de base nacional e profissional, as quais deviam proteger os trabalhadores ou beneficiários contra os riscos de doença, com prestações médicas e pecuniárias, e estabelecer fundos de assistência. Cobria também os riscos de invalidez e do desemprego involuntário e ainda garantia pensões de reforma e de sobrevivência".
  • Estas caixas sindicais de previdência eram "de livre iniciativa dos grémios patronais, dos sindicatos e suas federações, por meio de acordos ou por efeito de contratos colectivos de trabalho. A gerência era constituída por representantes das entidades patronais e sindicais";
  • Quanto às caixas de reforma ou de previdência "abrangiam trabalhadores de empresas determinadas por classes autónomas de trabalhadores";
  • O papel do Estado era apenas o de regulamentador: fixava a forma e o montante das contribuições económicas de ambas as partes (trabalhadores e patrões) bem como as modalidades de participação na gestão: "Era o corporativismo de associação no estado puro", conclui Ferreira (1995, p. 447).
  • Citando Rosas (1994, p. 98), "estava-se, então, em época de ilusões sobre a capacidade auto-reguladora do corporativismo de associação. A criação de caixas sindicais de previdência dependia da ‘vontade dos interessados’, ou seja, da celebração de contratos colectivos de trabalho, e o patronato opunha-se denodadamente (...) à sua assinatura (...) Entre 1934 e 1939, só se conseguem celebrar 91 convenções de trabalho, abrangendo grupos profissionais muito restritos (...) e de âmbito predominantemente distrital ou regional".

Nessa época Portugal continuava a ser um país predominantemente rural, a avaliar pela evolução da estrutura da população activa na primeira metade do Século XX (Quadro 1). Será lento o crescimento da população activa no sector secundário (que inclui, além da indústria transformadora, a construção e obras públicas, bem como a electricidade, gás e água), em contraste com a manutenção de uma elevada proporção de activos no sector primário (e nomeadamente na agricultura): sobe apenas 2 (!) pontos percentuais no espaço de meio século, entre 1890 (18%) e 1940 (20%). Em contrapartida, essa proporção irá subir 13 (!) pontos no período seguinte (1940-1974).

Por outro lado, até ao início da II Guerra Mundial, o peso absoluto e relativo do sector terciário está longe de significar qualquer tendência de modernização, já que nele se incluem, além do comércio e do funcionalismo público, os serviços domésticos e actividades afins. Estima-se em cerca de meio milhão o número de activos assalariados do sector terciário em 1940, dos quais um quinto seriam funcionários públicos (Rosas, 1994, p. 107).

Não obstante a lenta industrialização do país, o número de caixas de previdência acaba por aumentar, passando de 99 em 1938 para 3546 em 1942 (Lopes, 1993, p. 103):

  • Mas o número de trabalhadores beneficiários da previdência não ultrapassaria os 120 mil.ou seja, cerca de 4% da população activa total;

  • "Para o geral dos trabalhadores portugueses desse tempo, o desemprego, a doença prolongada ou velhice significam fome e miséria" (Rosas, 1994, p. 99).

A falta de protecção social era agravada pela degradação das condições de vida e de saúde nas cidades, a partir dos anos 30, nomeadamente devido ao aumento da população operária e trabalhadora e sua concentração em áreas socioespacialmente segregadas. A habitação que já era um "problema social" no tempo da República, agrava-se com o crescente número de pessoas a viverem em zonas superlotadas, em "vilas", "pátios", "ilhas", barracas e até furnas (as tristemente famosas furnas de Monsanto!), sem luz eléctrica, sem água canalizada e sem saneamento básico.

Mesmo em 1970, de acordo com um inquérito do Ministério das Obras Públicas, sobre condições de higiene e saneamento básico (cit.por Graça, 1996):

  • Só 40% das habitações portuguesas tinham distribuição de água ao domicílio;

  • Só 17% possuíam redes de esgoto;

  • E só 14% beneficiavam de sistemas de recolha e tratamento de lixos urbanos.

Em plena Ditadura Militar, em discurso proferido na sessão de homenagem aos beneméritos do novo hospital de Tomar, pertencente à misericórdia local, e na presença do "nobre Presidente da República" (já então o General Carmona), Ricardo Jorge lamentava a miserável parcela que a saúde pública representava então no orçamento geral do Estado:

  • "Entre nós consagram-se cerca de 4.400 contos para um total de despesas gerais de todo o orçamento que montam perto de 2.000.000 contos;

  • "A proporção é exactamente de 23 centésimas por cento — eis o quinhão da higiene. E note-se que as receitas sanitárias vão a perto de metade da verba;

  • "Ora os sanitaristas calculam que a cota normal deve ser de 2 a 3%, quer dizer, no nosso caso 10 vezes mais" (Jorge, 1928, cit. por Correia, 1960, p. 213).

A situação demográfica e sanitária do País continuava a ser motivo de grande preocupação para Ricardo Jorge, então com 70 anos e com uma atitude expectante (para não dizer colaboracionista) em relação ao novo regime instaurado pela Ditadura Militar:

  • "Colectivamente temos uma lata natalidade e uma lata mortalidade, características demográficas das nações menos graduadas na escala hígida. Nasce-se de mais, à razão de trinta e tantos por mil (...). E morre-se muitissimo em todas as idades. Enquanto que outros países vêem minguar o tributo obituário até um mínimo não sonhado outrora, nós mantemos cifras incomportáveis neste século"

  • "Basta dizer que Portugal deixa morrer por ano 20 e tantos por mil dos seus habitantes, enquanto que Londres, aglomerado de igual população, tem uma mortalidade de 12, isto é, de metade. As nossas cidades, especialmente o Porto e outras cidades da província, alcançam cifras macabras próximas de 30" (Jorge, 1928, cit. por Correia, 1960, p. 213).

De facto, os efeitos práticos da reforma sanitarista de Ricardo Jorge não foram nem grandes nem imediatos, já que as condições de vida, de trabalho e de saúde da população não melhoraram significativamente. Se considerarmos um clássico indicador, como o da mortalidade infantil (Figura 1):

  • Portugal estava longe, meio século depois, de ter entrado na senda dos países desenvolvidos cujas taxas evoluíram de 35 para 7, no período do pós-guerra até ao final da década de 1980;

  • Em 1910 a taxa de mortalidade infantil era de 209; só 40 anos depois é que está abaixo dos 100 (94 é valor referente a 1950);

  • Até 1974, os valores das taxas de óbitos de crianças até 1 ano de idade por 1000 nados-vivos "colocavam-nos entre os países do continente europeu de mais elevada mortalidade infantil, tendo por companheiro próximo apenas a Jugoslávia" (Pinto, 1994, p. 302);

  • Só a partir desse ano, é que se dá início ao "percurso de um declínio sensível": em 1995, a taxa de mortalidade infantil já está dentro da média europeia (7.4), embora continuasse ainda a ser a mais elevada da UE (DEPS, 1997).

Convirá, de qualquer modo, lembrar a dramática situação sanitária que herdámos do século XIX:

  • Em 1862, uma década depois do início da Regeneração, a taxa de mortalidade infantil seria da ordem dos 220 por mil (!);

  • Nos finais da década de 1880, só em Lisboa e no Porto faleciam, em média, 296 crianças até a um ano de idade, por cada mil nados-vivos (Cascão, 1993, p. 430).

Por outro lado, o abandono de crianças não parava de aumentar, a avaliar pelas entradas de expostos na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa: 1440, em 1781; 1617, em 1800; 1735, em 1826; 1909, em 1837; 2319, em 1845. As 'rodas de enjeitados' são oficialmente extintas em 1867 e substituídas por hospícios. (Graça, 1996).

Não admira, por isso, que Portugal continuasse a ter uma das mais baixas esperanças de vida à nascença no contexto dos países europeus:

  • 35.8 anos para os homens e 40 para as mulheres em 1920;

  • Situa-se hoje a níveis bastante elevados, se bem que tenham aumentado as diferenças entre sexos (7 anos a mais, no caso das mulheres, em 1994) (Figura 2).

Se considerarmos, por outro lado, a evolução das principais causas de morte, no período de 1960 a 1980, constatamos que a tuberculose, classificada no grupo das doenças do aparelho respiratório, continuava a ter um peso muito importante (Quadro 2).

Durante toda a segunda metade do século XIX e nas três primeiras décadas do Século XX, a tuberculose aumentou em Portugal, atingindo a sua mortalidade o valor máximo de 200 por cada 100 mil habitantes, em 1930, e correspondente a 10% de todos casos de morte.

Nos países mais evoluídos, desde o fim do século XIX que a mortalidade por tuberculose estava em persistente declínio e com valores muito inferiores aos registados entre nós: foi o caso, por exemplo, da Inglaterra e do País de Gales (Graça, 1996).

Mais concretamente no período de 1934-40, as diarreias e enterites eram a principal causa de morte em Portugal (14%), como consequência das crónicas deficiências alimentares da população e das más condições sanitárias, seguidas da tuberculose (10%) (Quadro 3).

Já no preâmbulo do Decreto nº 12477, de 12 de Outubro de 1926, que reorganizou a Direcção Geral de Saúde (diploma esse que vem assinado, entre outros, pelo ministro da Instrução Pública, Artur Ricardo Jorge, filho de Ricardo Jorge, na sua qualidade de ministro da tutela da saúde pública, que até 1925 fazia parte do Ministério do Trabalho, entretanto extinto), o legislador lamentava a apagada e vil tristeza em que Portugal se encontrava, quando comparado com as outras nações europeias—incluindo a Rússia soviética (!)— "onde hoje se encontram magníficas instituições [de higiene pública] que são para nós outros verdadeiras maravilhas".

Como exemplo de que "a saúde não tem preço e nunca será cara", apresentava-se o caso da "pequena Suíça", que em trinta anos reduzira drasticamente a sua morbimortalidade (Quadro 4).

Quadro 4 — Indicadores de morbimortalidade (Suiça, 1891 e 1922)

Ano

Indicador

1891

1922

Mortalidade (a)

20.6

12.9

Mortalidade infantil (no 1º ano) (a)

163

70

Moléstias transmissíveis (b)

145

33

Tuberculose (b)

209

141

a) Por mil (b) Por cem mil

Fonte: Preâmbulo do Decreto nº 12477, de 12 de Outubro de 1926

Em 1926, "a higiene do trabalho e das indústrias" (sic) continua a ser uma das competências da Direcção-Geral de Saúde:

  • Passando a agregar os diversos serviços públicos de saúde, dispersos por vários Ministérios (com excepção da Guerra, Marinha e Colónias), a Direcção-Geral seria igualmente dotada de autonomia técnica e administrativa;

  • É então criada, entre outras, a inspecção sanitária do trabalho, cujo quadro é constituído por dois (!) sub-inspectores médicos que transitavam das obras públicas e que ficavam na dependência directa do Director-Geral;

  • À inspecção da higiene do trabalho e das indústrias competia, "além dos serviços que estão a cargo da actual inspecção sanitária do trabalho, a tutela sanitária dos menores e mulheres empregadas nas indústrias e a higiene das minas" (art. 9º do Decreto nº 12477).

Com a agitação política e social que marcou o período da II Guerra Mundial, com a queda de Mussolini em 1943, e, finalmente, com a vitória militar dos Aliados sobre as potências do Eixo, o regime de Salazar sente-se seriamente ameaçado (Rosas, 1994, pp. 369 e ss.).

É neste contexto que o Estado Novo se vê obrigado a ensaiar algumas medidas de protecção social, incluindo no campo da saúde. Em 1958, no rescaldo da campanha eleitoral do General Humberto Delgado, será finalmente criado o Ministério da Saúde e Assistência.

Textos relacionados:

Referências bibliográficas

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(a) Extractos de: Graça, L. (1999): Enquadramento histórico da produção legislativa no domínio da Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho (SH&ST). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Escola Nacional de Saúde Pública, Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde, Disciplina de Sociologia da Saúde / Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações de Saúde, texto policopiado, 75 + 18 pp. (Textos, T 1325).


FONTE:

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos30.html

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