Entrevista: António Martins
(COM VÍDEO)
.* António Ribeiro Ferreira / Bruno Henriques da Silva
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Correio da Manhã/Rádio Clube – O estudo encomendado pela Sedes mostra que o principal problema da democracia é o descrédito da Justiça. Está de acordo com esta conclusão?
António Martins – É muito curioso porque em Novembro do ano passado fizemos um congresso em que o título era “O poder judicial numa democracia descontente”. O que é positivo no estudo é o indicador da independência dos juízes. Maioritariamente os cidadãos portugueses ainda consideram que os juízes são independentes do poder político. Isso é muito positivo.
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ARF – Os que não acreditam nessa independência, 37 %, é muito significativo ou não?
- Podemos reflectir como é que esse número é encontrado. Temos de compatibilizar com os outros indicadores. Desde logo as pessoas não acreditarem que a Justiça seja igual para pobres e ricos e que os políticos sejam tratados de forma igual ao cidadão comum.
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ARF – São números significativos. 79 % não acreditam que os políticos sejam tratados da mesma maneira e 82 % acham que há diferenças entre pobres e ricos.
- São números significativos. A Justiça enquanto produto final é resultado da acção ou falta dela de uma série de intervenientes numa democracia. Desde logo de quem faz as leis, o Parlamento e o Governo.
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ARF – Exacto.
- Boas leis seguramente ajudam o resultado final da Justiça. De quem põe os meios à disposição para poder ser aplicada a Justiça. De quem instala tribunais em número suficiente, de quem coloca funcionários em número adequado, de quem permite que cada juiz tenha tempo para julgar em tempo útil os processos. E quem tem essa responsabilidade são os Governos. Que durante estes trinta e três anos nos têm governado.
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BHS – Temos más leis? É isso que está a dizer?
- Não sou só eu que o digo. O Presidente da República tem-no dito várias vezes. Há estudos da própria presidência do Conselho de Ministros que referem que se gastam milhões de euros em legislação da má qualidade.
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BHS – E temos legislação a mais?
- Seguramente. Muita legislação, excesso de produção legislativa e má legislação. Isso ajuda negativamente no produto final da Justiça. E os resultados estão à vista. Os cidadãos não acreditam que ricos e pobres sejam iguais e que os políticos sejam tratados de igual forma que o cidadão comum.
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ARF – E isso é verdade ou não?
- O que é verdade seguramente é essa percepção. É uma percepção correcta no cidadão comum.
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ARF – E porque é que isso acontece?
- O que me satisfaz neste estudo é que as pessoas não dizem que isso ocorre porque os juízes não são independentes, não são imparciais ou porque sejam corruptos. A percepção dos cidadão acontece pela ineficácia e ineficiência principalmente do sistema penal.
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ARF – Aí coloca-se a questão dos ricos e pobres?
- Exacto. Se o cidadão comum for apanhado numa infracção rapidamente o sistema de justiça está a cair em cima dele, se for um político ou um cidadão rico o sistema aparentemente funciona mas rapidamente emperra porque essas pessoas têm capacidade de utilizar os mecanismos legais, todos e mais algum.
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ARF – O excesso de garantias para os arguidos previstos nos códigos é um factor contra a Justiça?
- Não gosto de utilizar a expressão excesso de garantias. Pode trazer uma ideia errada. O quero dizer é que o sistema como está construído, nomeadamente no processo penal, e também no processo civil devido a uma intervenção desastrosa do Governo, há tantos alçapões que dificilmente alguém consegue fazer o percurso total e chegar ao fim vivo, isto é, com o processo terminado e transitado em julgado e com uma decisão para ser executada.
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ARF – Esses alçapões não nasceram por acaso, foram lá postos para alguém os utilizar. Não foi por incompetência do legislador seguramente.
- Podem ser as duas coisas. Também alguma incompetência. Também admito que há um propósito, e isso foi claramente assumido pelos políticos, de utilizar esta reforma dos códigos penais de 2007 em função das experiências que eles achavam negativas do processo Casa Pia. O problema é que os cidadãos não acreditam que estão a viver num Estado de Direito porque a Justiça não é igual para todos. E aqui começam a ser colocados em causa os fundamentos do Estado de Direito. E é isso que todos os políticos têm de perceber. Estão a minar os alicerces essenciais do Estado de Direito. A credibilidade da Justiça tem de ser algo de essencial para todos nós, cidadãos, mas também para o sistema político.
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BHS – Qual é quota parte de responsabilidade dos agentes judiciais nesse descrédito da Justiça?
- Seguramente há responsabilidade de todos. Não vamos lavar as mãos e chutar para o lado. Todos temos de fazer mais e melhor. E os juízes definiram no último congresso as grandes linhas que devem balizar as suas acções e os seus comportamentos.
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BHS – Falou há pouco nas alterações aos códigos penais. As coisas pioraram com essas reformas?
- As coisas pioraram e não foi por falta de avisos. O relatório do Observatório da Justiça deve estar a sair e os resultados não devem ser bons. Talvez por isso o senhor ministro o esteja a esconder. As reformas não resolveram nenhum dos problemas diagnosticados e em alguns casos agravaram-nos.
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BHS – Isso quer dizer que defende uma nova revisão dos códigos?
- No congresso nós dissemos que é preciso rever todos os códigos de processo, não só o código de processo penal. É o processo penal, é o civil, é o laboral. Com esta ideia. O processo é um meio, não é o fim. O processo deve ser o meio de se alcançar o direito, de realizar o direito.
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BHS – Qual é o balanço que faz do mandato de Alberto Costa como ministro da Justiça?
- Não gosto de personalizar a questão e não a farei com base no senhor ministro. Eu faço uma análise e um balanço da Justiça deste Governo nestes quatro anos. O balanço que faço é extremamente negativo. O balanço das medidas positivas e das negativas pende claramente para as negativas. Este Governo nunca encarou a Justiça de um modo responsável e sério e de um modo efectivo e com estratégia. E chamo a atenção de duas para demonstrar que não encarou de forma séria e responsável.
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ARF – Quais?
- Não foi sério e responsável quando tentou atirar para cima dos juízes os ónus do funcionamento da Justiça dizendo que eram uns privilegiados porque tinham três meses de férias. E que iam resolver os problemas da Justiça reduzindo as férias judiciais.
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ARF – Esse foi o primeiro grande ataque aos juízes.
- Foi. Não foi responsável nem sério. O primeiro-ministro não pode dizer isso. Primeiro porque não é sério nem verdadeiro porque os juízes não têm mais férias do que o cidadão comum. Coisa diferente das férias dos juízes são as férias judiciais, ou seja, o período em que os tribunais não estão a funcionar em pleno. Não foi sério e responsável. Ou não sabia e foi ignorante ou sabia e não foi sério e responsável.
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ARF – E o outro ataque, qual foi?
- Depois houve outra atitude deste Governo que também não demonstra seriedade nem responsabilidade. Foi quando tentou colocar os juízes no regime geral da Função Pública, como meros funcionários públicos. Isto é não perceber que os tribunais não são os juízes. Os tribunais são um pilar essencial de uma democracia e os tribunais precisam de juízes independentes.
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BHS – Quatro anos e meio depois temos uma Justiça pior?
- Temos, seguramente. E não houve qualquer estratégia ou qualquer actuação planificada por parte do Governo na área da Justiça. Houve fogachos, pequenas coisas.
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ARF – Houve ou não houve uma tentativa clara do Governo de controlar politicamente os juízes?
- Só posso interpretar estas duas questões mais significativas como um propósito dessa natureza. Não tenho dúvidas nenhuma. Quis criar condições para tirar legitimidade aos juízes de tal maneira que acabava de os manietar na sua capacidade de exercer a sua função. Isto é, um tribunal tem de ser um pilar do Estado na relação com os outros poderes do Estado. Se isto não acontece temos uma democracia de menor qualidade.
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ARF – O ministro da Justiça faz sempre balanços positivos da Justiça, diz que há menos processos pendentes que os tribunais estão a dar uma melhor resposta. Isto é verdade?
- As estatísticas dão para tudo o que se quiser. E a melhor forma de contornar a realidade já não é mentir, porque isso é demasiado óbvio, às vezes é omitir, mas a melhor forma ainda é fazer estatísticas.
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BHS – O que é que o próximo Governo terá de fazer na justiça?
- O Governo que vier a seguir só tem de tirar as lições do passado. Se for um Governo PS tem de tirar as lições daquilo que correu mal e actuar de forma diferente. Se for outro tipo de Governo tem de tirar as lições daquilo que nestes quatro anos e meio se fez de muito negativo na área da Justiça.
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ARF – O que é que se passa com o Citius?
- É uma questão pertinente e coloca-se aí a questão da segurança e da eficácia. O que é preocupante é que neste momento continua a não ser assumido pelo Governo claramente que está disponível para que seja feita uma auditoria externa, por uma entidade credível, que ateste a segurança do sistema. E isto é fundamental. Enquanto isto não for feito todos temos razões para não saber quem tem acesso ao quê. E pode acontecer que os funcionários do Ministério da Justiça estarem a ceder a processos que estão em investigação.
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ARF – O sistema está instalado numa direcção-geral do Ministério.
- O suporte físico dos discos e do sistema informático está instalado numa instalações que dependem do Instituto de Tecnologia e Informática do Ministério da Justiça. São funcionários dependentes do Ministério da Justiça que neste momento têm acesso ao controlo físico das instalações, ao controlo e ao acesso aos equipamentos e a todo o sistema.
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ARF – Isso não é gravíssimo?
- É inadmissível, é inaceitável. Nós já o dissemos claramente. Este sistema informático no que diz respeito à investigação deve ser dependente da Procuradoria-Geral da República. No que diz respeito aos processos judiciais deve estar dependente do Conselho Superior da Magistratura. São as duas únicas entidades que já hoje têm a obrigação, face ao suporte físico, de acautelar a sua segurança. E além disso esse sistema está a gerar uma ineficiência total nos tribunais. Está a gerar mais de 30 % de trabalho perdido. E este tempo vai ser tirado a outras tarefas, nomeadamente aos julgamentos.
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PERFIL
António Francisco Martins tem 48 anos, é casado e pai de três filhos. Licenciou-se em Direito na Faculdade de Direito de Lisboa e frequentou o Centro de Estudos Judiciários de 1984 a 1985. Promovido a juiz-desembargador, foi colocado no Tribunal da Relação de Coimbra, primeiro, e agora na Relação do Porto. É presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses desde 2006.
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in Correio da Manhã - 05 Julho 2009 - 00h30
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