Actores da censura no regime democrático
* César Príncipe
Os actores e os actos da Censura no Regime Democrático revelam uma adaptação funcional e estilística ao novo contexto, reflectindo também uma disputa por audiências e receitas publicitárias. Estamos a falar de Portugal, com um Governo alistado no eixo do bem e noutras cruzadas da GlobAmericanização e da EuroPatronal. A quadratura do Poder (económico, político, social e cultural) não negligenciou as regras do Novo Livro de Estilo da Censura, instituindo quatro conceitos normalizadores: o Global e o Superficial, a Agressividade e a Instantaneidade. O Jornalismo de Massas copia as prescrições do Império e inclui algumas miméticas gráficas e algumas notas etnográficas. Ao jornalismo da aldeia global junta-se algum jornalismo de proximidade. Os órgãos de comunicação de massas subordinam-se a lógicas trans(nacionais) e subordinam os telespectadores, radiouvintes e leitores aos desígnios do lucro empresarial e da estabilização sistémica. Na realidade, assistimos ao diário encerramento de empresas do ramo têxtil ou do calçado, do ramo metalúrgico ou agro-alimentar, mas não assistimos a tal vertigem de fecho de portas em qualquer estação televisiva ou diário de referência ou até de médio significado. Qual o remédio da longevidade, apesar de alguns actores apresentarem regulares ou episódicos prejuízos de milhões e milhões de euros? É que os prejuízos contabilísticos (para além das engenharias que os transferem e absorvem por holdings e off-shores ) são compensados pelos rendimentos propagandísticos e pelo dever-haver sócio-disciplinador. A teoria das correias de transmissão , imputada ao activismo sindical, encontra nos mass media um espelho fiel dos interesses vigentes e convergentes. Ideologia e tecnologia servem tal estratégia, escolarizada ou pragmática, mas que contribui como um dos dispositivos de administração dos públicos pelo publicado.
Deste pressuposto se deduz a prova dos nove: não há informação isenta, independente ou qualquer categoria congénere, mau grado os afadigamentos, ora patéticos ora seráficos, para vender títulos, credibilizar campanhas, simular profissionalismos e pluralismos. Quanto mais um fabricante e franchisado da Informação mascara e maquilha as faces da dependência com ares de independência, quanto mais formata estratégias privadas in nomine público, quanto mais invoca a fidedignidade das notícias encobrindo a volúpia comercial, quanto mais institui o expresso como embuste da Expressão, em regra, o que mais consegue é aproximar-se da perfeição das aparências, da despistagem censória. Há diferenças de competência e de concorrência, de sectarismo e de coexistência, mas inseridas na elasticidade das virgens de alterne da Comunicação Social.
Quais as diferenças formais e factuais entre a Censura do Estado Novo e a Censura do Novo Estado? Muitas há e não seria historicamente correcto nem intelectualmente honesto meter as duas no mesmo saco ou no mesmo Index. As vicissitudes e os desenganos deste ciclo democrático não justificam qualquer equiparação ou nostalgia, como também não impõem qualquer dever de cegueira relativamente às malhas e às manhas da Nova Censura. Convirá não adormecer no colo ou no consolo das conquistas democráticas, formalmente irreversíveis . Comecemos pelas alterações gerais do regime censório. No plano orgânico ou estrutural, verificou-se uma mudança de domicílio ou uma deslocalização. Na verdade, no período do Estado Novo, a Censura passou da fase castrense à fase paisana (não deixando, todavia, nos seus 48 anos, de incorporar militares na Guerra Civil da Informação e da Contra-Informação), sediando os serviços Centrais no Palácio Foz (Lisboa) e em delegações distritais, com especial zelo no Porto, onde se editavam e editam três centenários matutinos. Com o advento do regime de Liberdade de Imprensa, após o 25 de Abril de 1974, transcorridos os meses de agudos conflitos de rua e de quartel, com a Comunicação Social alinhada com as correlações de forças no tablado, o modelo capitalista recompôs-se e reorganizou-se pelos padrões da rede imperial da Informação e do Show-Business Mediático, escudando-se nas suas balizas e cábulas doutrinárias, diligente e prestamente difundidas pelos estabelecimentos de Ensino Superior e por outras tribunas catequéticas (beatas ou laicas).
A CENSURA MORA AO LADO
Numa dinâmica de empresariato neoliberal, de privatizações galopantes e de compressão de custos e direitos laborais, a Censura (constitucionalmente banida), desocupou os edifícios estatais e estigmatizados e alojou-se, camuflada, nas empresas de Comunicação, sob batuta, já não dos coronéis , mas dos bacharéis . Isto é, o regime censório democrático, compelido a esconder as vergonhas do fascismo, acabaria por resolver as suas necessidades com alguma subtileza e apreciável poupança: passou a exercer o Exame Prévio dentro da esfera empresarial e redactorial, dando lugar a uma nova figura executiva. Essa nova figura reconhecer-se-á no director-censor ou no censor-editor e demais hierarquizadores de evidências e pertinências, realçadas, mutiladas ou rasuradas das programações segundo as incumbências dos aparelhos e as conveniências dos aparelhados. Assim o capitalismo neoliberal disfarçou a existência de Censura, colando as duas peles (jornalista e censor) numa só pele, numa só pena e num só salário. Os censores acobertam-se, agora, sob a capa da Carteira Profissional de Jornalista ou mesmo do crachat de filiado do Sindicato dos Jornalistas. O capitalismo procedeu a uma vingança a frio, com requintes sadomasoquistas: transferiu para o seio das classes-mensageiras as tensões e o odioso da máquina censória. Assim também evitou investimentos em aposentos distintos e distantes artérias, aliviando os pesadelos orçamentais do Ministério das Finanças. Assim se processou a ascensão e se consagrou a promoção do Censor New: Leve dois e pague um . A chamada classe jornalística e os apelidados sectores intelectuais e quadros técnicos têm de encarar-se autocriticamente, sem tabus corporativos e (igualmente) sem obsessões suicidárias ou justiceiras. Espécie de vestais das liberdades constitucionais e das honorabilidades profissionais têm de procurar e delinear uma fronteira entre tais os requisitos de modeladores de sociedades e mentalidades e de assalariados da preCaridade laboral e selectiva.
Porque o resultado está patente: foi-se implantando uma nova orgânica em que poder económico assumiu o encargo político de triar as elites da comunicação, da governação e da oposição, de controlar a psicologia social e as movimentações de protesto, arcando com programas de reeducação popular, defendendo o mínimo de pão e o máximo de circo. Nesta perspectiva, a do pão, fez-se moda a telecaridade, o socorro em directo, com estações, principalmente as televisivas, a mobilizar a Nação para algumas desditas (pessoais, familiares, locais, sociais), mas não abordando as suas causas sistémicas, abstendo-se de equacionar a cronicidade e a recorrência dos casos, e muito menos apontando as câmaras, os microfones e as lapiseiras aos indiciados dos crimes da miséria e da ignorância, das guerras e das pestes. Alguns escandaletes não ultrapassam a barreira do som do capitalismo estruturante e mandante. As balanças da Imprensa e da Justiça estão, no terreno do concreto, impedidas de levantar certas questões ou de assediar certos personagens. As narrativas e as caras das novelas dos telejornais, das bancas dos jornais e dos bancos dos réus não perturbam os verdadeiros senhores do Poder. Até este preciso momento, nenhum verdadeiramente poderoso sentou o rabo no mocho . Nem no período mais quente do 25 de Abril tais fantasmáticas criaturas enfrentaram a Justiça: de Américo Tomás a Marcelo Caetano, dos mais enérgicos capitães da indústria aos mais ilustrosos barões da alta finança . Alguma cândida alma estará persuadida de que a fina-flor do Poder finalmente está a contas com os escrutínios da Imprensa e os roliços tomos penais? Pelo contrário, as omnipresentes novelas judiciárias servem para entretenimento dos cidadãos de sofá, para desviar os ímpetos reactivos às políticas em curso e para vender uma imagem de que o Estado de Direito Democrático funciona. Claro que funciona: falta saber quando e com quem, porquê, para quem e para quê.
Restará também concluir se tais agentes da República ou da coisa pública não tenderão a deslizar para uma postura de impostura, quando não para uma condição de serviço/servilismo (não obstante alguns lampejos críticos e alguns lances utópicos). Fria e sistematicamente prospectados e confrontados com os seus códigos de barras, muitos correm o risco, como arrivistas do sistema ou operadores mecânicos, de se caninizarem ou, no classificativo de Halimi, redundarem em chiens de garde . [1]
NEO-REALISMO CAPITALISTA
Portanto, há que conferir super-relevo a pequenas tragédias e a médias delinquências do quotidiano, emprestando às instituições democráticas e aos industriais de consciências e construtores e destruidores de projectos sociais um álibi de imparcialidade e de humanismo, preocupando-se com meia dúzia de micro-sujeitos, não desprezíveis num planeamento editorial de choque. O capitalismo neoliberal e mediático, à boa maneira das Igrejas, concede umas fracções de antena a algumas vítimas e a alguns caídos nas valetas da penúria, nas sarjetas da carne e nos alçapões da Casa da Moeda. Às vítimas da imprudência e da impudência trata de as confessar antes do último suspiro. Igualmente à boa maneira das rainhas santas e dos fidalgos boémios se mistura algum nobre sangue com as mínguas das ralés e os gonococos das rameiras. Desvarios referendários: é o renovar do milagre das rosas e dos banhos de multidão . Pontifica e grassa, entre os políticos e os gestores de espadas e balanças, bem como entre pivots empoleirados nas antenas da Pátria, repórteres em cima, por baixo, à frente e ao lado do acontecimento e da notícia e comentadores de estúdio, de estádio e de Estado, uma espécie de Neo-Realismo Capitalista, uma corrente de retórica social e hard-core, com interesses inconfessos e fidelidades descartáveis.
A componente de circo abocanha, pelos gotejamentos lacrimais e pela boçalidade exibicionista e voyeurista , mais ondas hertzianas e toneladas de celulose: uma grande fatia da programação prende-se com diversões propriamente ditas ou com sensacionalismos para toxicodependentes de electrodomésticos. O sistema propicia, por exemplo, corda livre ao Sexo, instalando-o como assunto residente nas Agendas, porque possui dons atractivos, do paródico ao mórbido, que o recomenda como cabaretização do espaço público e como salvação das grelhas e das paginações. O capitalismo neoliberal ordenou aos seus boys e às suas girls: incitem o povo a mostrar o sexo e a esconder a cabeça. Escancarem, se for estimulante, a própria quinquilharia genital. O sexo é uma coisa barata e à mão. Todos têm uma maquineta de procriação e de recreação. E Portugal é um Grande Zoo de machos erectos e proclinados e de fêmeas alevantadas e acocoradas. O sistema fica assim cristã e romanamente partilhado: a economia para as classes favorecidas, o sexo para as classes desfavorecidas. Amostragem de overdose: só o caso Casa Pia (abusos sexuais) preencheu, em Fevereiro de 2003, 716 pontos da Agenda das três televisões de bandeira nacional num total de 968 blocos temáticos; em Maio, o gráfico da febre Sexo & Crime nos écrans já ia nas 794 peças; em Outubro, o massacre dos inocentes já somava 900 agendamentos. [2] Aos espectáculos de sexo adicionam-se os delírios do futebol, os milagres da fé e os concursos milionários, para quem quiser pertencer ao Clube dos Crentes e ao Clube dos Ricos, embora ninguém seja obrigado a ser devoto ou milionário. A liberdade de não ser milionário é, de resto, uma das nossas Liberdades Fundamentais.
Assim os novos vistos da Censura tudo fazem para não serem vistos, para se tornarem invisíveis, quer na sua face acerada quer na sua face aveludada, devolvidos aos consumidores como naturalíssimas e neutralíssimas opções editoriais, como sincera vocação pelas ingerências humanitárias, pelas graças divinas e gracejos humanos, enfim, pelo bem-estar das finas gentes e dos indigentes, fármacos sem contra-indicações para o sistema. Nestas artes misericordiosas e circenses estimula-se a overdose , um dos pratos fortes da sociedade da abundância e da celeridade comunicacional. Mata-se o burro com fardos de palha e sopas de vinho e enfeitam-se os córneos gados nas chegas e arenas. Os apetrechos audiovisuais, tal como a press desdobrável e on-line , são uma constante e complacente montra de gurus e gabirus do situaciOportunismo e do situaCinismo. É a Novo Programa da Junta de Salvação Nacional: lixeiras a céu aberto como Sopa dos Pobres de Espírito e de Bens e parfum do jet-set de silicone para um Portugal- fashion e must . Já em áreas adversas e com referentes não-recomendáveis para o sistema, os directores-censores ou os editores-censores e demais hierarquizadores cortam total ou parcialmente, desvirtuam impactes, arrumam factos e declarações em sítios e sites de reduzida frequência, suspendem a aguardar o parecer dos accionistas, de satélites circum-navegantes e redes ópticas. O corpo de delito encheria todas as horas numerosos terminais de mercadorias, tal é o volume e a gravidade da gestão danosa da opinião pública. Apenas uma amostra desta gerência na Casa do Big-Brother, na Black House da InformagloBalização:
Ao ler a manchete do «Observer», de Londres, no último domingo, imaginei que os jornais americanos já teriam repercussões da revelação sobre a escuta telefónica pedida por Washington, nas missões de países com assento no Conselho de Segurança da ONU. Afinal, os jornais londrinos apareceram na Internet várias horas antes do fecho das edições americanas. Não consegui encontrar nenhuma referência de destaque. Quem precisa de governo repressivo se a informação pode ser suprimida de forma voluntária? (Guimarães) [3]
LÁPIS AZUL MODERNISTA
O regime censório democrático criou, por consequência, um dilema e uma má consciência à chamada classe jornalística e a outros estratos intelectuais (que, na generalidade, denunciaram os métodos e os cerceamentos da ditadura): os empresários da Comunicação, os castratori , elegem, para cada estrutura e para cada conjuntura, os seus escriBajulantes e os seus megafo Nets , bem como as trupes de meninos/meninas de coro, os castrati , predispostos a carreiras de sucesso nos ofícios dos templos e dos serralhos. E eles e elas passam a exercitar, com prontidão de homo habilis , o lápis azul , um lápis modernista, acoplado num computador. Tais agentes do situaciOportunismo gentílico e do situaCinismo gentil, alguns manipulados e manipuladores, desde logo, exibem e prescrevem pulseiras electrónicas mediáticas; desde logo, seleccionam os actores e as actrizes dos palcos económicos, políticos, sociais e culturais, fazendo uso das suas armas e dos seus redondéis nas lides, nos leads e nas lideranças. O instrumento legitimador e desculpabilizante é a Agenda, elaborada conforme os refrões do Poder indígena; segundo os ditames e os motes da Ordem Global; de acordo com as guarnições mentais dos agendistas.
Assim se gradualizam os critérios de empolamento e esbatimento, o que implica aparelhos de pressão, internos e externos e uma cultura de agressividade tablóide. Aos internos já nos reportámos. Quanto aos externos, destacaremos, no campo luso, os Gabinetes de Imprensa e Relações Públicas (de governos, autarquias, partidos, fundações, empresas, organismos multivários), que, variando de perfil estratégico e de tácticas de intimidade e de intimidação, de sedução e retribuição, conseguem interferir e intervir, por vezes ipsis verbis , no agendamento; no campo mais lato, os órgãos de comunicação acham-se reféns, assumidos ou inocentemente úteis, das orquestrações mundiais. Bastará relancear a Imprensa Internacional de Grande Tiragem ou saltitar de Canal em Canal para surpreender um jornalismo made in , que frequentemente chega a vazar, sem um angélico rubor ou um despertante pestanejo, os produtos das Centrais, propagando, sem máscara nem luvas, as pneumonias típicas e atípicas da Informação. Uma percentagem avassaladora de temas e blocos programáticos reproduz sugestões exteriores. As ementas dos média são insistentemente cozinhadas fora de casa. As Redacções foram formatadas como microondas do fast-food , reaquecendo os enlatados dos Gabinetes, das Agências, da CNN, das conferências dos Novos Doutores da Lei e dos briefings dos Generais da Velha Ordem. Essa invasão, por exemplo na vertente musical, roça o impudor segregacionista: cerca de 70% da música emitida nas estações da Pátria é de filhos da pauta anglo-saxónica. Temos as antenas censuradas e colonizadas.
A actividade dos directores-censores, dos censores-editores e demais hierarquizadores pauta-se, pois, pela inteligência sistémica, mais ou menos cônscia da sua missão nos contenciosos entre ordens, ordenanças e ordenados, propriedades, oportunidades e liberdades. Eles têm a presumida ou a instintiva convicção de que a entidade que dá o pau é a entidade que dá a cenoura. Eles aprenderam e aprendem a reconverter jurados códigos procedimentais e rapidamente se arvoraram e arvoram em mestres e maestros da Escola Universal do Reino do Silêncio e do Ruído. Estão encarregados de velar pelos gráficos de receptividade e a vigiar os subversivos. Estão autorizados a veicular e a vincular informação e deformação, a organizar serões da Nova FNAT e sondagens de enquadramento censitário. Estão merCenarizados pelo infocapitalismo, disponíveis para cruzadas no Ocidente e no Oriente, segundo as persuasões do dólar e do euro, da libra ou do iene. Estão ginasticados para as tecnologias de ponta, generosos a prendar os respeitáveis públicos com aquilo que tais públicos (supostamente) reclamam: inteligência fecal, lixo estereocromático, palha celulósica e hertziana:
CENSOR: alguém cuja função é separar a palha do grão, a fim de ser publicada a palha . (Vilhena) [4]
A FAMIGLIA E O NOVO LATIM
Como se frisou, as tendências críticas não gratas ao sistema são menorizadas, alvo de distorções e descontextualizações, quando não completamente abafadas. A partir de certo tempo aceitou-se como percalço acidental e dano colateral a existência de publicidade enganosa e até pretensamente se legislou para a desincentivar e a sancionar. Mas quem sanciona a informação enganosa? Dir-se-á (em última instância) os consumidores, os destinatários. Mas não é fácil ao viciado livrar-se do traficante, não é fácil reunir e reservar imunidades individuais num território infectado, numa atmosfera de encapotadas capitulações e de festivos embrutecimentos. E como dispor de corpos de mediação comunicacional num quadro de economia multinacional e de empresas piramidais, que exigem meios interactivos e vultuosos? Atente-se nos negócios da famiglia italiana, na berlusconização da Liberdade de Imprensa:
O que é a liberdade de palavra? Em Itália, é-se teoricamente livre de dizer o que se pensa. O problema é onde . (Tabucchi) [5]
No período ditatorial, algumas publicações resistiram à Censura, na clandestinidade e no exílio, no permanente sobressalto e salto; no regime censório democrático, a Imprensa não afecta ao sistema defronta-se com expedientes pré-condicionantes: desde logo, provida de parcos fundos e de incapacidade de se constituir como lobby político-financeiro, não alcança a detenção e a orientação dos Grandes Meios de Comunicação (TV, Rádio, Jornais, Revistas). Também não obteria créditos da Banca nem poderia depositar esperança no bolo publicitário . A Imprensa alternativa subsiste por militância dos redactores e dos leitores. É um toque de alarme (cívico e cultural) cercado por contínuos bombardeamentos das artilharias pesadas, mediáticas e imediatas, nacionais e imperiais. A Informação alternativa mantém-se acantonada. O Jornalismo Único prolifera, para gáudio dos corsários da ética e dos funâmbulos de ocasião.
Para glorificar sobremaneira este panorama de Liberdade de Imprensa, estamos perante uma canhestra ofensiva contra a Língua Portuguesa. Para lá do já exposto no que toca à radiodifusão musical, com os Camones o usurpar o verbo de Camões, de Vieira, de Eça, de Camilo, de Pessoa, de Aquilino, de Eugénio de Andrade, de Saramago, assistimos a um Serviço Público e Privado em insanável litígio com os dicionários e outros repositórios. A Censura ao idioma matricial da Lusofonia pratica-se e reveste-se, aqui, de três formas: com pontapés na Gramática, com socos na Sintaxe e de pernas abertas à importação de armas de distracção/disTraição maciça. Quero crer que a Língua, tão mal tratada, tão barbaramente espancada por canais e jornais, é o derradeiro órgão de soberania que nos compete e nos resta acautelar. Tratemos bem das nossas vogais e das nossas consoantes, dos nossos prefixos e dos nossos sufixos, das nossas concordâncias e pronúncias, populares e eruditas. Talvez tais unidades verbais e regras vocabulares venham a incutir-nos um suplemento de ânimo para nos levantarmos do chão , para se lograr conter o americanês, o latim do Novo Império; para que nos prefiguremos como uma República das Letras, uma República com uma palavra a dizer nos 25 partidos da Europa e nas sete partidas do Mundo.
Tenho dito e escrito. E tenho sorte: já não me levam preso.
Mas seremos homens livres só porque já não nos prendem?
________ Deste pressuposto se deduz a prova dos nove: não há informação isenta, independente ou qualquer categoria congénere, mau grado os afadigamentos, ora patéticos ora seráficos, para vender títulos, credibilizar campanhas, simular profissionalismos e pluralismos. Quanto mais um fabricante e franchisado da Informação mascara e maquilha as faces da dependência com ares de independência, quanto mais formata estratégias privadas in nomine público, quanto mais invoca a fidedignidade das notícias encobrindo a volúpia comercial, quanto mais institui o expresso como embuste da Expressão, em regra, o que mais consegue é aproximar-se da perfeição das aparências, da despistagem censória. Há diferenças de competência e de concorrência, de sectarismo e de coexistência, mas inseridas na elasticidade das virgens de alterne da Comunicação Social.
Quais as diferenças formais e factuais entre a Censura do Estado Novo e a Censura do Novo Estado? Muitas há e não seria historicamente correcto nem intelectualmente honesto meter as duas no mesmo saco ou no mesmo Index. As vicissitudes e os desenganos deste ciclo democrático não justificam qualquer equiparação ou nostalgia, como também não impõem qualquer dever de cegueira relativamente às malhas e às manhas da Nova Censura. Convirá não adormecer no colo ou no consolo das conquistas democráticas, formalmente irreversíveis . Comecemos pelas alterações gerais do regime censório. No plano orgânico ou estrutural, verificou-se uma mudança de domicílio ou uma deslocalização. Na verdade, no período do Estado Novo, a Censura passou da fase castrense à fase paisana (não deixando, todavia, nos seus 48 anos, de incorporar militares na Guerra Civil da Informação e da Contra-Informação), sediando os serviços Centrais no Palácio Foz (Lisboa) e em delegações distritais, com especial zelo no Porto, onde se editavam e editam três centenários matutinos. Com o advento do regime de Liberdade de Imprensa, após o 25 de Abril de 1974, transcorridos os meses de agudos conflitos de rua e de quartel, com a Comunicação Social alinhada com as correlações de forças no tablado, o modelo capitalista recompôs-se e reorganizou-se pelos padrões da rede imperial da Informação e do Show-Business Mediático, escudando-se nas suas balizas e cábulas doutrinárias, diligente e prestamente difundidas pelos estabelecimentos de Ensino Superior e por outras tribunas catequéticas (beatas ou laicas).
A CENSURA MORA AO LADO
Numa dinâmica de empresariato neoliberal, de privatizações galopantes e de compressão de custos e direitos laborais, a Censura (constitucionalmente banida), desocupou os edifícios estatais e estigmatizados e alojou-se, camuflada, nas empresas de Comunicação, sob batuta, já não dos coronéis , mas dos bacharéis . Isto é, o regime censório democrático, compelido a esconder as vergonhas do fascismo, acabaria por resolver as suas necessidades com alguma subtileza e apreciável poupança: passou a exercer o Exame Prévio dentro da esfera empresarial e redactorial, dando lugar a uma nova figura executiva. Essa nova figura reconhecer-se-á no director-censor ou no censor-editor e demais hierarquizadores de evidências e pertinências, realçadas, mutiladas ou rasuradas das programações segundo as incumbências dos aparelhos e as conveniências dos aparelhados. Assim o capitalismo neoliberal disfarçou a existência de Censura, colando as duas peles (jornalista e censor) numa só pele, numa só pena e num só salário. Os censores acobertam-se, agora, sob a capa da Carteira Profissional de Jornalista ou mesmo do crachat de filiado do Sindicato dos Jornalistas. O capitalismo procedeu a uma vingança a frio, com requintes sadomasoquistas: transferiu para o seio das classes-mensageiras as tensões e o odioso da máquina censória. Assim também evitou investimentos em aposentos distintos e distantes artérias, aliviando os pesadelos orçamentais do Ministério das Finanças. Assim se processou a ascensão e se consagrou a promoção do Censor New: Leve dois e pague um . A chamada classe jornalística e os apelidados sectores intelectuais e quadros técnicos têm de encarar-se autocriticamente, sem tabus corporativos e (igualmente) sem obsessões suicidárias ou justiceiras. Espécie de vestais das liberdades constitucionais e das honorabilidades profissionais têm de procurar e delinear uma fronteira entre tais os requisitos de modeladores de sociedades e mentalidades e de assalariados da preCaridade laboral e selectiva.
Porque o resultado está patente: foi-se implantando uma nova orgânica em que poder económico assumiu o encargo político de triar as elites da comunicação, da governação e da oposição, de controlar a psicologia social e as movimentações de protesto, arcando com programas de reeducação popular, defendendo o mínimo de pão e o máximo de circo. Nesta perspectiva, a do pão, fez-se moda a telecaridade, o socorro em directo, com estações, principalmente as televisivas, a mobilizar a Nação para algumas desditas (pessoais, familiares, locais, sociais), mas não abordando as suas causas sistémicas, abstendo-se de equacionar a cronicidade e a recorrência dos casos, e muito menos apontando as câmaras, os microfones e as lapiseiras aos indiciados dos crimes da miséria e da ignorância, das guerras e das pestes. Alguns escandaletes não ultrapassam a barreira do som do capitalismo estruturante e mandante. As balanças da Imprensa e da Justiça estão, no terreno do concreto, impedidas de levantar certas questões ou de assediar certos personagens. As narrativas e as caras das novelas dos telejornais, das bancas dos jornais e dos bancos dos réus não perturbam os verdadeiros senhores do Poder. Até este preciso momento, nenhum verdadeiramente poderoso sentou o rabo no mocho . Nem no período mais quente do 25 de Abril tais fantasmáticas criaturas enfrentaram a Justiça: de Américo Tomás a Marcelo Caetano, dos mais enérgicos capitães da indústria aos mais ilustrosos barões da alta finança . Alguma cândida alma estará persuadida de que a fina-flor do Poder finalmente está a contas com os escrutínios da Imprensa e os roliços tomos penais? Pelo contrário, as omnipresentes novelas judiciárias servem para entretenimento dos cidadãos de sofá, para desviar os ímpetos reactivos às políticas em curso e para vender uma imagem de que o Estado de Direito Democrático funciona. Claro que funciona: falta saber quando e com quem, porquê, para quem e para quê.
Restará também concluir se tais agentes da República ou da coisa pública não tenderão a deslizar para uma postura de impostura, quando não para uma condição de serviço/servilismo (não obstante alguns lampejos críticos e alguns lances utópicos). Fria e sistematicamente prospectados e confrontados com os seus códigos de barras, muitos correm o risco, como arrivistas do sistema ou operadores mecânicos, de se caninizarem ou, no classificativo de Halimi, redundarem em chiens de garde . [1]
NEO-REALISMO CAPITALISTA
Portanto, há que conferir super-relevo a pequenas tragédias e a médias delinquências do quotidiano, emprestando às instituições democráticas e aos industriais de consciências e construtores e destruidores de projectos sociais um álibi de imparcialidade e de humanismo, preocupando-se com meia dúzia de micro-sujeitos, não desprezíveis num planeamento editorial de choque. O capitalismo neoliberal e mediático, à boa maneira das Igrejas, concede umas fracções de antena a algumas vítimas e a alguns caídos nas valetas da penúria, nas sarjetas da carne e nos alçapões da Casa da Moeda. Às vítimas da imprudência e da impudência trata de as confessar antes do último suspiro. Igualmente à boa maneira das rainhas santas e dos fidalgos boémios se mistura algum nobre sangue com as mínguas das ralés e os gonococos das rameiras. Desvarios referendários: é o renovar do milagre das rosas e dos banhos de multidão . Pontifica e grassa, entre os políticos e os gestores de espadas e balanças, bem como entre pivots empoleirados nas antenas da Pátria, repórteres em cima, por baixo, à frente e ao lado do acontecimento e da notícia e comentadores de estúdio, de estádio e de Estado, uma espécie de Neo-Realismo Capitalista, uma corrente de retórica social e hard-core, com interesses inconfessos e fidelidades descartáveis.
A componente de circo abocanha, pelos gotejamentos lacrimais e pela boçalidade exibicionista e voyeurista , mais ondas hertzianas e toneladas de celulose: uma grande fatia da programação prende-se com diversões propriamente ditas ou com sensacionalismos para toxicodependentes de electrodomésticos. O sistema propicia, por exemplo, corda livre ao Sexo, instalando-o como assunto residente nas Agendas, porque possui dons atractivos, do paródico ao mórbido, que o recomenda como cabaretização do espaço público e como salvação das grelhas e das paginações. O capitalismo neoliberal ordenou aos seus boys e às suas girls: incitem o povo a mostrar o sexo e a esconder a cabeça. Escancarem, se for estimulante, a própria quinquilharia genital. O sexo é uma coisa barata e à mão. Todos têm uma maquineta de procriação e de recreação. E Portugal é um Grande Zoo de machos erectos e proclinados e de fêmeas alevantadas e acocoradas. O sistema fica assim cristã e romanamente partilhado: a economia para as classes favorecidas, o sexo para as classes desfavorecidas. Amostragem de overdose: só o caso Casa Pia (abusos sexuais) preencheu, em Fevereiro de 2003, 716 pontos da Agenda das três televisões de bandeira nacional num total de 968 blocos temáticos; em Maio, o gráfico da febre Sexo & Crime nos écrans já ia nas 794 peças; em Outubro, o massacre dos inocentes já somava 900 agendamentos. [2] Aos espectáculos de sexo adicionam-se os delírios do futebol, os milagres da fé e os concursos milionários, para quem quiser pertencer ao Clube dos Crentes e ao Clube dos Ricos, embora ninguém seja obrigado a ser devoto ou milionário. A liberdade de não ser milionário é, de resto, uma das nossas Liberdades Fundamentais.
Assim os novos vistos da Censura tudo fazem para não serem vistos, para se tornarem invisíveis, quer na sua face acerada quer na sua face aveludada, devolvidos aos consumidores como naturalíssimas e neutralíssimas opções editoriais, como sincera vocação pelas ingerências humanitárias, pelas graças divinas e gracejos humanos, enfim, pelo bem-estar das finas gentes e dos indigentes, fármacos sem contra-indicações para o sistema. Nestas artes misericordiosas e circenses estimula-se a overdose , um dos pratos fortes da sociedade da abundância e da celeridade comunicacional. Mata-se o burro com fardos de palha e sopas de vinho e enfeitam-se os córneos gados nas chegas e arenas. Os apetrechos audiovisuais, tal como a press desdobrável e on-line , são uma constante e complacente montra de gurus e gabirus do situaciOportunismo e do situaCinismo. É a Novo Programa da Junta de Salvação Nacional: lixeiras a céu aberto como Sopa dos Pobres de Espírito e de Bens e parfum do jet-set de silicone para um Portugal- fashion e must . Já em áreas adversas e com referentes não-recomendáveis para o sistema, os directores-censores ou os editores-censores e demais hierarquizadores cortam total ou parcialmente, desvirtuam impactes, arrumam factos e declarações em sítios e sites de reduzida frequência, suspendem a aguardar o parecer dos accionistas, de satélites circum-navegantes e redes ópticas. O corpo de delito encheria todas as horas numerosos terminais de mercadorias, tal é o volume e a gravidade da gestão danosa da opinião pública. Apenas uma amostra desta gerência na Casa do Big-Brother, na Black House da InformagloBalização:
Ao ler a manchete do «Observer», de Londres, no último domingo, imaginei que os jornais americanos já teriam repercussões da revelação sobre a escuta telefónica pedida por Washington, nas missões de países com assento no Conselho de Segurança da ONU. Afinal, os jornais londrinos apareceram na Internet várias horas antes do fecho das edições americanas. Não consegui encontrar nenhuma referência de destaque. Quem precisa de governo repressivo se a informação pode ser suprimida de forma voluntária? (Guimarães) [3]
LÁPIS AZUL MODERNISTA
O regime censório democrático criou, por consequência, um dilema e uma má consciência à chamada classe jornalística e a outros estratos intelectuais (que, na generalidade, denunciaram os métodos e os cerceamentos da ditadura): os empresários da Comunicação, os castratori , elegem, para cada estrutura e para cada conjuntura, os seus escriBajulantes e os seus megafo Nets , bem como as trupes de meninos/meninas de coro, os castrati , predispostos a carreiras de sucesso nos ofícios dos templos e dos serralhos. E eles e elas passam a exercitar, com prontidão de homo habilis , o lápis azul , um lápis modernista, acoplado num computador. Tais agentes do situaciOportunismo gentílico e do situaCinismo gentil, alguns manipulados e manipuladores, desde logo, exibem e prescrevem pulseiras electrónicas mediáticas; desde logo, seleccionam os actores e as actrizes dos palcos económicos, políticos, sociais e culturais, fazendo uso das suas armas e dos seus redondéis nas lides, nos leads e nas lideranças. O instrumento legitimador e desculpabilizante é a Agenda, elaborada conforme os refrões do Poder indígena; segundo os ditames e os motes da Ordem Global; de acordo com as guarnições mentais dos agendistas.
Assim se gradualizam os critérios de empolamento e esbatimento, o que implica aparelhos de pressão, internos e externos e uma cultura de agressividade tablóide. Aos internos já nos reportámos. Quanto aos externos, destacaremos, no campo luso, os Gabinetes de Imprensa e Relações Públicas (de governos, autarquias, partidos, fundações, empresas, organismos multivários), que, variando de perfil estratégico e de tácticas de intimidade e de intimidação, de sedução e retribuição, conseguem interferir e intervir, por vezes ipsis verbis , no agendamento; no campo mais lato, os órgãos de comunicação acham-se reféns, assumidos ou inocentemente úteis, das orquestrações mundiais. Bastará relancear a Imprensa Internacional de Grande Tiragem ou saltitar de Canal em Canal para surpreender um jornalismo made in , que frequentemente chega a vazar, sem um angélico rubor ou um despertante pestanejo, os produtos das Centrais, propagando, sem máscara nem luvas, as pneumonias típicas e atípicas da Informação. Uma percentagem avassaladora de temas e blocos programáticos reproduz sugestões exteriores. As ementas dos média são insistentemente cozinhadas fora de casa. As Redacções foram formatadas como microondas do fast-food , reaquecendo os enlatados dos Gabinetes, das Agências, da CNN, das conferências dos Novos Doutores da Lei e dos briefings dos Generais da Velha Ordem. Essa invasão, por exemplo na vertente musical, roça o impudor segregacionista: cerca de 70% da música emitida nas estações da Pátria é de filhos da pauta anglo-saxónica. Temos as antenas censuradas e colonizadas.
A actividade dos directores-censores, dos censores-editores e demais hierarquizadores pauta-se, pois, pela inteligência sistémica, mais ou menos cônscia da sua missão nos contenciosos entre ordens, ordenanças e ordenados, propriedades, oportunidades e liberdades. Eles têm a presumida ou a instintiva convicção de que a entidade que dá o pau é a entidade que dá a cenoura. Eles aprenderam e aprendem a reconverter jurados códigos procedimentais e rapidamente se arvoraram e arvoram em mestres e maestros da Escola Universal do Reino do Silêncio e do Ruído. Estão encarregados de velar pelos gráficos de receptividade e a vigiar os subversivos. Estão autorizados a veicular e a vincular informação e deformação, a organizar serões da Nova FNAT e sondagens de enquadramento censitário. Estão merCenarizados pelo infocapitalismo, disponíveis para cruzadas no Ocidente e no Oriente, segundo as persuasões do dólar e do euro, da libra ou do iene. Estão ginasticados para as tecnologias de ponta, generosos a prendar os respeitáveis públicos com aquilo que tais públicos (supostamente) reclamam: inteligência fecal, lixo estereocromático, palha celulósica e hertziana:
CENSOR: alguém cuja função é separar a palha do grão, a fim de ser publicada a palha . (Vilhena) [4]
A FAMIGLIA E O NOVO LATIM
Como se frisou, as tendências críticas não gratas ao sistema são menorizadas, alvo de distorções e descontextualizações, quando não completamente abafadas. A partir de certo tempo aceitou-se como percalço acidental e dano colateral a existência de publicidade enganosa e até pretensamente se legislou para a desincentivar e a sancionar. Mas quem sanciona a informação enganosa? Dir-se-á (em última instância) os consumidores, os destinatários. Mas não é fácil ao viciado livrar-se do traficante, não é fácil reunir e reservar imunidades individuais num território infectado, numa atmosfera de encapotadas capitulações e de festivos embrutecimentos. E como dispor de corpos de mediação comunicacional num quadro de economia multinacional e de empresas piramidais, que exigem meios interactivos e vultuosos? Atente-se nos negócios da famiglia italiana, na berlusconização da Liberdade de Imprensa:
O que é a liberdade de palavra? Em Itália, é-se teoricamente livre de dizer o que se pensa. O problema é onde . (Tabucchi) [5]
No período ditatorial, algumas publicações resistiram à Censura, na clandestinidade e no exílio, no permanente sobressalto e salto; no regime censório democrático, a Imprensa não afecta ao sistema defronta-se com expedientes pré-condicionantes: desde logo, provida de parcos fundos e de incapacidade de se constituir como lobby político-financeiro, não alcança a detenção e a orientação dos Grandes Meios de Comunicação (TV, Rádio, Jornais, Revistas). Também não obteria créditos da Banca nem poderia depositar esperança no bolo publicitário . A Imprensa alternativa subsiste por militância dos redactores e dos leitores. É um toque de alarme (cívico e cultural) cercado por contínuos bombardeamentos das artilharias pesadas, mediáticas e imediatas, nacionais e imperiais. A Informação alternativa mantém-se acantonada. O Jornalismo Único prolifera, para gáudio dos corsários da ética e dos funâmbulos de ocasião.
Para glorificar sobremaneira este panorama de Liberdade de Imprensa, estamos perante uma canhestra ofensiva contra a Língua Portuguesa. Para lá do já exposto no que toca à radiodifusão musical, com os Camones o usurpar o verbo de Camões, de Vieira, de Eça, de Camilo, de Pessoa, de Aquilino, de Eugénio de Andrade, de Saramago, assistimos a um Serviço Público e Privado em insanável litígio com os dicionários e outros repositórios. A Censura ao idioma matricial da Lusofonia pratica-se e reveste-se, aqui, de três formas: com pontapés na Gramática, com socos na Sintaxe e de pernas abertas à importação de armas de distracção/disTraição maciça. Quero crer que a Língua, tão mal tratada, tão barbaramente espancada por canais e jornais, é o derradeiro órgão de soberania que nos compete e nos resta acautelar. Tratemos bem das nossas vogais e das nossas consoantes, dos nossos prefixos e dos nossos sufixos, das nossas concordâncias e pronúncias, populares e eruditas. Talvez tais unidades verbais e regras vocabulares venham a incutir-nos um suplemento de ânimo para nos levantarmos do chão , para se lograr conter o americanês, o latim do Novo Império; para que nos prefiguremos como uma República das Letras, uma República com uma palavra a dizer nos 25 partidos da Europa e nas sete partidas do Mundo.
Tenho dito e escrito. E tenho sorte: já não me levam preso.
Mas seremos homens livres só porque já não nos prendem?
NOTAS
1. Halimi, Serge, Nouveaux Chiens de garde , Liber-Raisons d'agir, Paris, 1997
2. Estudo Mediamonitor/Marktest, in JN, 24/11/2003.
3. Guimarães, Lúcia, in DN, 09/03/2003.
4. Vilhena, José, Proibido Pensar? , FNAC/Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, 2003.
5. Tabucchi, Antonio, in Visão, 23/10/2003.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
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