-            Jorge Messias           
 
Os silêncios da fé
A Igreja católica  instalou-se em Portugal a par da formação e desenvolvimento de outras  classes poderosas de grandes senhores senhores feudais, nomeadamente a  dos terra-tenentes que dominavam a economia e as técnicas da guerra.  Logo que o território conquistado se constituiu em Condado a Igreja,  como classe dirigente mais culta e esclarecida, apoderou-se facilmente  da gestão dos negócios públicos e transformou-se, ela própria, em  importante factor da economia privada e em elemento central do aparelho  militar da Conquista e da Expansão. O Estado, edificado sobre as  misérias e os sofrimentos do povo, lançando as massas umas contra as  outras e impondo castas de senhores das guerras, da aventura e do  comércio, era intransigentemente confessional. O povo português,  aristocraticamente ignorado pelo poder, via nos nobres, no rei e na  Igreja o espelho de todas as virtudes. À Igreja, em particular, incumbia  dissolver em caldos da religião as sementes amargas das iras e das  rebeliões populares.
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O tempo foi passando, os homens  transformaram-se e a sociedade também, mas a Igreja permaneceu estática,  dogmática e inamovível. Assim continua e é esse, hoje em dia, o seu  problema central. A hierarquia domina o clero e o laicado e é aliada  preferencial dos ricos, em cujos interesses participa. Mas sabe que dar a  público esse verdadeiro rosto é coisa que de modo algum lhe convém. Por  isso tenta controlar e conduzir os crentes propondo parábolas  maravilhosas e enredando-se cada vez mais nas mentiras e intrigas que  permitam à hierarquia aproveitar, nos quadros do mais feroz capitalismo e  até ao último suspiro, o que resta da noção de religião e parte do povo  português ainda cultiva.
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A quem e de quê falam os bispos?
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Em entrevista recentemente concedida a um  diário de grande distribuição, o actual cardeal-patriarca português, D.  José Policarpo, fez declarações que, não sendo de espantar, ajudam a  compreender algumas das razões que conduziram ao atoleiro onde a Igreja  portuguesa, pelos seus próprios meios, se meteu. As palavras do cardeal  foram reveladoras das angústias eclesiais mas omitiram deliberadamente  as questões vitais com que se debate o povo português que, naturalmente,  inclui uma larga faixa de católicos pobres. Trata-se de uma habilidosa  montagem verbal, tão ao gosto das igrejas encalhadas no tempo. O que se  diz é sempre menos importante do que aquilo de que se fala.
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Tentou D. José justificar os comportamentos  da Igreja portuguesa, declarando: «Estamos a cair na situação  anacrónica em que qualquer intervenção da Igreja – e de modo particular  da sua hierarquia – em dimensões fundamentais… é facilmente julgada como  intervenção na esfera do estritamente político». Depois, desenvolveu  esta posição: «A hierarquia, por decisão própria e em defesa do carácter  específico do seu magistério, abstém-se habitualmente de se imiscuir no  âmbito do estritamente político». Em seguida, o cardeal vai ao que mais  interessa. «Mas os cristãos leigos não são a isso obrigados e devem ser  porta-vozes no seio da sociedade dos autênticos valores cristãos.  Cristãos leigos devem ser porta-vozes da Igreja». E D. José especifica:  «Há necessidade de verdadeiras testemunhas de Cristo: políticos,  intelectuais, profissionais da comunicação». Em resumo: o  cardeal-patriarca português reconhece a gravidade da situação social de  crise permanente, alude à falta de ética da vida política do regime e  refere vagamente autênticos valores cristãos que o povo sabe,  por experiência própria, não serem os que norteiam o capitalismo e a  Igreja. E louva, em contrapartida, a sabedoria da Conferência  Episcopal que consiste em ver, ouvir e calar. Vai por fim ao ponto de  apelar aos cristãos para que formem uma base sólida à política de  espoliação que se encobre nos silêncios e nas fantasias da actual  governação. Nem uma só vez D. José referiu o povo ou identificou os  responsáveis pelo desemprego, pela subida do custo de vida, pela  injustiça da distribuição da riqueza ou pela política financeira  portuguesa. Apelou às vítimas para que mobilizem a sua fé a favor da  sôfrega ambição dos seus carrascos.
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O filme que se desenrola à frente dos  nossos olhos torna evidente que Portugal tende a parar no tempo. São os  políticos que se imitam uns aos outros e respeitam um mesmo figurino.  São os grandes capitalistas que geram a crise e a aproveitam para mais  enriquecer. São os filantropos que falam, tal como D. José, nos autênticos  valores cristãos, para desenvolverem os seus negócios, ocultarem  as fraudes e aprofundarem o fosso entre os ricos e os pobres. E é um  Estado que rapidamente se demite da sua condição.
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Para pormos Portugal em movimento é  imperioso fazermos justamente o oposto àquilo que o cardeal aconselha. É  preciso intensificarmos a luta pela ruptura e pela mudança. E temos de  subir ao alto das montanhas para denunciarmos aos quatro cantos da terra  o que se passa neste país.
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Só assim poderemos construir um país novo, a  partir de uma visão universal de justiça. Uma terra com desenvolvimento  económico e liberdade intelectual. Onde credos e convicções sejam  respeitados num plano de igualdade. País novo onde se abram as portas do  futuro e se trace um novo rumo em Portugal no âmbito de uma democracia  real e avançada, até ao Socialismo.
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Tarefa árdua, tarefa dura e cheia de  perigos, mas caminho que deve se percorrido, lado a lado, pelos homens e  mulheres honestos que têm os olhos postos no Homem e pelos homens e  mulheres honestos que têm os olhos postos nos Céus.
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N.º 1910
8.Julho.2010 - Avante
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