O espelho de Salazar
Impressão Digital
Francisco Moita Flores
Não é Salazar quem ressurge como um herói fantasma. A saudade é a resposta emocional à mediocridade reinante.
A questão foi lançada a propósito de um programa de televisão e ressurgiu com maior violência este fim-de-semana com a visita a Santa Comba Dão de um grupo de antifascistas que protesta contra a sua edilidade por criar um museu que plasme a vida e obra de Salazar.
A questão que esta emergência de paixões coloca obriga-nos a reflectir. Sendo certo que passaram quase quarenta anos sobre a morte do ditador, que já faz 33 anos que aconteceu o 25 de Abril, sendo certo que todos os grandes partidos não se reclamam herdeiros da sua obra, e até a repudiam, que ao longo de todos estes anos de democracia nem a escola, nem os discursos dominantes têm sido favoráveis ao Estado Novo, que a geração que recorda Salazar terá mais de cinquenta anos e aquela que viveu a revolução de Abril mais de 45 anos, o que explicará esta onda de saudosismo, de vivificação de um tempo já tão distante na memória dos mais novos? Se falarmos com jovens, homens até de 30, 40 anos, percebemos que reina a mais profunda ignorância sobre o regime salazarista mas também é difícil de encontrar quem o repudie vivamente com excepção de alguns institucionalizados nas juventudes partidárias.
Considero esta onda de simpatia inquietante. Não tanto por estar aí a ameaça de uma ditadura mas por admitir sem qualquer preconceito que esta saudade de Salazar celebra muito menos aquilo que ele foi, e fez, mas é sobretudo o espelho do desprezo e do repúdio pela falência de expectativas que o regime democrático está a provocar no imaginário de muitos que se encontram perante a vida sem projectos, sem futuro, dominados pelo medo e pela insegurança. A revivificação de Salazar acusa-nos e com razão. Acusa em primeira instância a regra democrática assente nos partidos políticos que se esqueceram há muito da necessidade de fazer da sua prática uma referência de exemplaridade cívica, de probidade intelectual, de integridade moral. Vazios, falhos de ideias, caceteiros e produtores de caciques, em vez de culturas de cidadania, mais empenhados nos seus vínculos ao poder, seja a que preço for, quietos em vez de inquietos, mitificando o poder pessoal deste ou daquele, desinteressados da reflexão profunda e programática sobre o nosso futuro. Depois, é a própria desonra da política. Sucedem-se governos atrás de governos que prometem o céu, que asseguram que agora é de vez, pedem sacrifícios e martírios, mas basta instalarem-se para repetirem as mesmas fórmulas, trocarem as voltas ao que disseram, desdizendo-se com o mesmo descaramento.
Salazar é um dos símbolos da injustiça, da restrição das liberdades individuais, da prisão sem justa causa. Mas por aqui, o regime democrático tem um passado de vergonha que cada vez menos possui força moral para denunciar o ditador. É já um enorme exército de gente vítima da prisão extemporânea, do achincalhamento nacional sem honra de julgamento, de condenações na praça pública porque se ser um simples arguido, coisa que hoje vale divisas de bandido. Não é Salazar quem ressurge como um herói fantasma. A saudade é a resposta emocional à mediocridade reinante, à desilusão teimosa, à destruição paulatina dos valores essenciais da dignidade e da honradez em nome de uma clientela qualquer e de um cacique qualquer sem escrúpulos. De certa forma, estamos a ser confrontados com a nossa própria incapacidade, a nossa incompetência, a nossa tolerância face à degradação moral do próprio poder. Salazar não tem culpa. Mais do que herdeiros dele, somos herdeiros de Pôncio Pilatos e a História não perdoa tanta indiferença.
Francisco Moita Flores, Professor Universitário
CORREIO DA MANHÃ - 05.03.2007
Ilustração - Zé Povinho (rafael Bordalo Pinheiro) retirada de NATURAL SELECTIONS:
Em 1875, o genial caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, retratando a sociedade portuguesa do tempo, cria uma das suas mais conhecidas personagens: O Zé-Povinho. Símbolo do "ignorante, servil, boneicheirão, com a sua albarda e o seu riso soez". Era a imagem da raia-miúda portuguesa (J.Augusto-França), explorada por políticos corruptos e incompetentes. Ainda hoje esta personagem continua a ser evocada, quando se pretende criticar certos comportamentos colectivos estúpidos e alarves face à sociedade e a política.
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