A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

quinta-feira, abril 05, 2007



Os Sons do PREC

«Grândola, vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade...» Passavam vinte minutos da meia-noite quando o "sinal" se faz ouvir por todo o país, através do programa Limite, de Carlos Albino, Leite de Vasconcelos e Paulo Coelho, na Rádio Renascença. Cerca de uma hora e meia antes, E Depois do Adeus fora o "primeiro aviso" radiodifundido por João Paulo Dinis através dos Emissores Associados de Lisboa. Agora, o futuro dependia da determinação dos capitães que, a partir desse momento, tomavam nas suas mãos a tarefa imparável do derrube do governo marcelista.

Com o fim do fascismo, abriram-se as portas para a canção, a nova canção portuguesa até então proibida, perseguida, marginalizada. Pela Rádio e pela Televisão, até então de portas quase totalmente fechadas às novas expressões musicais, passam exaustivamente as composições de Zeca, Letria, Godinho, Adriano, Cília, Zé Mário... As editoras, até então reticentes quanto ao futuro dos "baladeiros" e dos "cantores de intervenção" (salvo, abem dizer, as honrosas excepções de Arnaldo Trindade, Lda - Discos Orfeu e da Sassetti), começam a investir fortemente no novo filão, gravando e difundindo tudo o que, de algum modo, pudesse ser apresentado como "cartão de visita" da Revolução.

Novos Tempos, Novas Lutas

Do exílio regressam todos: Sérgio Godinho, José Mário Branco, Luís Cília, Francisco Fanhais. Por todo o lado multiplicam-se os cantos livres e as sessões musicais mais ou menos improvisadas, na ânsia de recuperar no imediato tudo o que não tinha sido possível nos anos do medo. No I Encontro Livre da Canção, realizado no Porto poucos dias depois do derrube da ditadura, um grupo de cantores e activistas intelectuais tenta criar um movimento unitário que dê força e abra novos caminhos à sua forma de luta. Tal esforço traduziu-se num comunicado do denominado "Colectivo de Acção Cultural", assinado por Adriano Correia de Oliveira, Carlos Albino, Carlos Augusto Gil, Eduarda Ferreira, Fausto, Francisco Fanhais, Francisco Gago da Silva, Isabel Branco, José Afonso, José Jorge Letria, José Mário Branco, José Maria Correia, Júlio Pereira, Luís Cília, Luís Cortesão, Manuel Freire, Manuel Alegre e Vitorino, que terminava com um apelo «a todos os trabalhadores culturais antifascistas, anticolonialistas e anti-imperialistas consequentes que estejam interessados em pôr a sua actividade musical ao serviço dos objectivos acima definidos (o pão, a paz, a terra, a independência nacional e a liberdade) e no sentido de unificar o multiplicar a nossa participação organizada e activa no movimento democrático e popular.»
Mas se o 25 de Abril representava o fim do obscurantismo e a possibilidade de concretizar em liberdade os objectivos que durante tantos anos tinham sido o motor da unidade entre os cantores antifascistas, vinha também pôr em evidência as diferenças entre eles, tornando impossível a criação de um movimento total. E o "colectivo" acabaria por desaparecer tão depressa como tinha nascido, com o crescimento das cisões entre os vários grupos político-partidários por que se distribuíam os cantores de intervenção.

Rupturas

Tudo isto, que pode parecer hoje uma grande confusão, fazia parte da normalidade do dia-a-dia pós-revolucionário. Assim, ninguém se espantou por a revista MC-Mundo da Canção, pioneira na divulgação dos "baladeiros", incluir no seu primeiro número posterior ao 25 de Abril uma citação de Mão Tsé-tung a abrir uma saudação às novas perspectivas abertas pelo golpe militar à criatividade dos cantores portugueses. A seguir podia ler-se uma extensa autocrítica do director, também ela recheada de citações de Mão, Lenine e outros dirigentes de massas, prometendo para breve «a construção de uma nova revista finalmente ao serviço da classe operária e das massas trabalhadoras suas aliadas».

De então para cá muitas coisas mudaram. As formas, os estilos, os conteúdos das canções, os sonhos, as perspectivas político-ideológicas. O Muro de Berlim caiu e trouxe atrás dele toda a verdade que se escondia por trás do socialismo real. O próprio Mão deixou de ser Tsé-tung e passou a ser Zedong graças aos prodígios da transcrição fonética. E a China já não olha o imperialismo americano como um tigre de papel, mas antes como um parceiro credível para o país do socialismo de mercado. Extinguiram-se os maoistas, adaptaram-se os estalinistas, reconverteram-se os leninistas. Mas nada disto se sabia nos meses que se seguiram ao 25 de Abril. Maio de 68 foi, para nós, Abril de 74 - mas, enquanto a "pré-revolução" francesa durou escassas semanas, a nossa manteve-se ao longo de um ano e meio, até Novembro de 75.

Tanto a Fazer...

«Vivemos tantos anos a falar pela calada / só se pode querer tudo quando não se teve nada /só quer a vida cheia quem teve a vida parada». Sérgio Godinho cantava assim, em 1974. Um canto urgente, feito de pequenas notas, de palavras, de motivações imediatas. Nesse tempo não havia tempo para mais. Era necessário motivar as pessoas, dar-lhes a entender o que acontecia, e as canções eram como notícias de jornal: efémeras, é certo, mas ainda assim definitivas. A actividade de José Afonso e dos seus companheiros durante esse ano e meio que durou o PREC repartiu-se entre as tarefas mais urgentes c as lutas mais marcantes dessa altura.

Mas isso não lhe retirou a capacidade crítica. Pelo contrário: «Não confundo canção de intervenção com panfleto partidário, embora, em determinada altura, eu tenha incorrido nesse erro», afirmaria, anos mais tarde. E acrescentava: «A canção de intervenção implica um espírito de renúncia a um triunfalismo fácil, bem como ao vedetismo; implica a noção de que estamos afazer música mais como serviço público do que como forma de averbar glórias.» Tratava-se, assim de uma opção concreta, como explicou noutra ocasião: «Talvez porque tenha uma deformação de 16 anos de ensino, dou a minha preferência à intervenção directa, prefiro levar o ouvinte a fazer a sua própria festa com o imediatismo que a canção suscita.»Relatos Cantados...

Desses tempos da canção de intervenção ficaram algumas dezenas de canções, criadas e interpretadas por pessoas como o Zeca, Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira. Ficou a memória de alguns dos melhores momentos criativos do Grupo de Acção Cultural (onde pontificava José Mário Branco) e ficaram milhares de horas vividas em torno de acções, umas mais colectivas do que outras, todas elas destinadas a «agitar a malta», como se exigia na época, fosse graças ao MFA ou a iniciativas de colectividades, círculos culturais, associações de moradores ou comissões de trabalhadores. Naturalmente, José Afonso foi um dos mais activos participantes dessas jornadas culturais em que a canção teve um papel fundamental.

No Ano do Verão Quente...

Em 75, o mercado discográfico português não registou grandes novidades. Tal como aconteceu com os praticantes das outras artes, os músicos sentiram nessa altura que havia coisas mais importantes para fazer do que gravar discos: era o tempo dos "cantos livres", das "campanhas de alfabetização", de inúmeras "sessões de esclarecimento" onde, regra geral, os músicos tinham um papel importante. E os poucos discos gravados nessa altura reflectem esta mesma preocupação. São desse ano registos como Viva o Poder Popular / Foi Na Cidade do Sado, gravado por Zeca para a LUAR e que dava conta das movimentações geradas em tomo de um comício do então Partido Popular Democrático, em Setúbal. Assim: «Aos sete do mês de Março / quinta-feira já se ouvia / dizer à boca calada / que o PPD era a Cia / (...) Eram talvez quatrocentos /gritando a plenos pulmões: / abaixo o capitalismo / não queremos mais tubarões! (... ) / A um sinal combinado /já quente a polícia vem / arreia, polícia, arreia / que o Totta Açores paga bem». António Vieira da Silva, actualmente médico em Aveiro, falava dos «lobos» e das «hienas» que «disfarçados de cristãos / entre cânticos de amor» COMN piravam contra a democracia. O disco, fruto da euforia da época, não teve a melhor das receptividade por parte de alguma crítica, mas ficou, como os de José Jorge Letria, do Grupo Outubro, ou, numa linha menos politizada, da Banda do Casaco, a marcar uni período excepcional de criatividade musical. As palavras de ordem eram inspiração suficiente para multas músicas: «Paz, pão, habitação, saúde, educação» eram, ainda, reivindicações do quotidiano e serviram a Sérgio Godinho de mote para um belo tema sobre a liberdade. «A vitória é difícil mas é nossa», apregoada pelo PCP -, resultou numa canção de José Jorge Letria. Carlos Alberto Moniz - Maria do Amparo cantavam um «força, força companheiro Vasco» garantindo que «nós seremos a muralha de aço». E, de um modo mais simples, Tino Flores garantia: «Camaradas, no fundamental nós temos os mesmos problemas». Manuel Freire alertava contra os «camaleões» (que é como quem diz, os fascistas recauchutados em neo-democratas) a quem era necessário dar «um chuto no traseiro» e, na mesma linha, José José Barata Moura falava do «cravo vermelho ao peito» que «a todos fica bem» e «sobretudo faz jeito a certos filhos da mãe». Luís Cília cantava O Guerrilheiro e deixava a Luísa Basto a tarefa de mobilizar as massas com o seu "Avante, camarada". E a Banda do Casaco dava os primeiros toques de uma irreverência que faria escola, ao falar Dos Benefícios Dum Vendido No Reino dos Bonifácios.

Ainda o Alucinante Ano de 75...


Em pleno ano de 75 Júlio Pereira despedia-se em definitivo da área do rock, compondo e interpretando, com Carlos Cavalheiro, o LP Bota-fora , enquanto José Cid materializava a sua 'obra-ensaio' intitulada Onde, Quando, Como, Porquê Cantamos Pessoas Vivas , com textos seus e de José Jorge Letria, que assinalou o fim oficial do Quarteto 1111. Foi um trabalho a que Cid tentou dar continuidade, algum tempo depois, com 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, mas, infelizmente, sem êxito. Foi, também, em 1975 que Jorge Constante Pereira editou Cantigas de Ida e Volta, um interessante disco dirigido ao público infantil. Nele participaram, à boa maneira colectiva da época, alguns dos mais representativos nomes da música portuguesa de então, desde Sérgio Godinho a Fausto, passando por Vitorino - que só no ano seguinte veria editado o seu álbum de estreia, Semear Salsa Ao Reguinho. Da mesma altura datam alguns dos mais significativos trabalhos do Grupo de Acção Cultural (GAC), que iniciou a sua actividade, ainda em 74, com músicas como Alerta!, A luta do Jornal do Comércio ou A cantiga é uma arma. De 75 o GAC regista temas como Soldados ao lado do povo e Classe contra classe, ambas com música de Eduardo Paes Mamede e letra de João Lisboa, actualmente crítico de música do Expresso. Fausto compusera, entretanto, canções como O Poder às Classes Trabalhadoras - título que os ideólogos do GAC consideraram vagamente trotsquista, transformando-o em O Poder Aos Operários e Camponeses - ou No Vermelho de um Vulcão, que veio a integrar o disco o Viva a Bandeira Vermelha, atribuído a um Coro Popular 'O Horizonte é Vermelho', com sede na Rua de São Bernardo, 48, em Lisboa. O LP (primeiro e, ao que creio, único da etiqueta 'Viva o Povo') trazia, na contracapa uma das mais sonoras palavras-de-ordem dessa época - «Viva a cultura democrática e popular, patriótica, científica e de massas!» - impressa nos tons de amarelo e vermelho, próprios do MRPP.


De resto, as edições partidárias e similares eram mais ou menos comuns nessa época: de Samuel (no PCP) ao já citado single de Zeca Afonso, comercializado pela LUAR, aconteceu em 75 de tudo um pouco. Até Amália Rodrigues, a velha senhora que, com razão ou sem ela, personificava de algum modo o regime recém-derrubado, não resistiu a gravar em disco o tema que, desde 25 de Abril de 1974 andava nas bocas de toda a gente: Grândola, vila morena, nem menos, em versão fadista pouco inspirada e que não chegou para fazer história.

Sérgio e Zeca em 75

O mesmo já não pode dizer-se do LP À Queima Roupa, de Sérgio Godinho, que acabaria por tomar-se numa das primeiras crónicas cantadas da revolução portuguesa. Temas com Liberdade, Cão raivoso ou De coração e raça ficaram a marcar um tempo único da música portuguesa. Tal como Coro dos Tribunais, de José Afonso, gravado em finais de 74 e amplamente divulgado no ano seguinte, integralmente composto por temas anteriores ao 25 de Abril, e que marcava já a diferença entre o canto de circunstancia e a arte revolucionária, fosse através de hinos mais ou menos imediatistas como O que faz falta ou de temas mais complexos, como Tenho um primo convexo ou A presença das formigas.

É, aliás, durante todo o ano de 1975 que José Afonso irá compor a maioria das canções que haveriam de integrar o seu LP Com As Minhas Tamanquinhas, editado em 76 - um disco que Zeca gostava de considerar como um dos seus melhores e que, na verdade, representa o retrato vivo do tempo que mediou entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975.

Ainda edições do ano de 75...

Desse ano ficou, também, a memória do mais agitado Festival RTP da Canção de sempre, que contou, entre outras, com as participações de José Mário Branco, com Alerta!, e de Carlos Cavalheiro, com A Boca do Lobo, de Sérgio Godinho. E ficaram as canções de Fausto, no álbum Um beco com saida, e de Adriano Correia de Oliveira, em Que Nunca Mais, com poemas de Manuel da Fonseca, arranjos de Fausto e uma das escassas participações de Carlos Paredes em discos alheios. E muitas coisas diferentes de Fernando Tordo, Ary dos Santos, Carlos Mendes. E um disco chamado Não de Costas, Mas de Frente, voltando uma página decisiva na carreira de Paulo de Carvalho. E milhares de quilómetros percorridos a cantar, em luta por um amanhã que, afinal, não veio. E uma mão cheia de revelações latino-americanas, a arte heterodoxa dos italianos Area (cujo álbum Arbeit Macht Frei ajudaria a divulgá-los entre nós, nesse mesmo ano), os cantos revolucionários do Grupo Coral dos Mineiros de Aljustrel, responsáveis pela interpretação do hino da Intersindical, com letra de Mário Vieira de Carvalho sobre uma música do século XVIII, recolhida por Luís Cília.

O Regresso à "Normalidade"...

Só isso? Claro que não. 1975 foi também um ano propício a algumas das mais hábeis operações de mimetismo político, até junto da classe cantante. Assim, e porque o vento estava de feição, até se ouviam antigos reis da rádio cantarem coisas como esta: «Não, não basta dizermos não / A hora é de trabalhar / Pela revolução / Não, não queremos voltar atrás / Não queremos voltar a ser / Escravos do capital. / Camponeses, unamos a nossa voz /A terra é de todos nós / Abaixo a exploração. / Companheiro não cedas o teu lugar / Que a hora é de trabalhar / Pela revolução. / Vê, amigo, por onde vais / Agora é a nossa vez / Agora ou nunca mais. / Vê, amigo trabalhador / Não vendas o teu suor / Abaixo o capital.» O intérprete deste canto fervoroso era Paco Bandeira, nem menos. A canção, essa, durou pouco tempo. O golpe militar de 25 de Novembro, nesse mesmo ano de 75, encarregou-se de restituir a normalidade ao país. E cada um pode, então, voltar a representar o papel que lhe competia no xadrez artístico lusitano.

http://rateyourmusic.com/list/Altair82/contos_velhos__rumos_novos

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