A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

domingo, julho 29, 2007

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Fados do Tempo da Outra Senhora (38)
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Os Almocreves:
sua importância enquanto agentes de comunicação inter-comunitários
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* André Mano
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Na nossa era de informação instantânea, constante e omnipresente, imaginarmo-nos a nascer, viver e morrer no mesmo sitio poderá ser um exercício mental complicado, contudo, só fazendo este exercício poderemos compreender o quão importantes eram todos aqueles que não faziam o seu dia-a-dia numa determinada localidade mas entre várias.
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Era esse o caso dos Almocreves, condutores de animais de carga que faziam do transporte de bens de uma terra para outra a sua profissão. Não confundir almocreves com mercadores, pois que na maior parte das vezes os bens que transportavam não eram propriedade sua, embora fosse comum um almocreve ser também mercador. Na maior parte das vezes, o almocreve alugava os seus serviços de carga e transporte a mercadores, pescadores, lavradores e até aos municípios e ao Estado. Também acontecia não serem proprietários dos animais porque a almocrevaria, se bem que não sendo uma actividade de grandes rendimentos, atraía algumas pessoas do que hoje chamaríamos "classe média" que entregavam os seus bois e burros a este negócio, contratando um almocreve para o exercício da actividade propriamente dita.
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Profissão conhecida em Portugal desde pelo menos os tempos do Conde D. Henrique (séc. XI-XII), ainda em princípios do séc. XX existiam pessoas que viviam da almocrevaria, altura em que a industrialização e o desenvolvimento das comunicações, tornou este ofício obsoleto. Não obstante, na Idade Média e na Idade Moderna a importância dos almocreves é demonstrada através do facto de cada vila ter o seu corpo de almocreves submetidos ao almotaçé (oficial concelhio encarregado da fiscalização de questões logísticas e de abastecimento da respectiva vila ou cidade), e também por constituírem, não raras vezes, entre os profissionais do comércio e dos serviços o grupo mais numeroso, o que revela a importância da economia local em detrimento de uma economia baseada em relações internacionais como acontece hoje. Assim, e a título de exemplo, Torres Vedras no séc. XV tinha 47 almocreves inscritos e apenas 32 mercadores.
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Como já se percebeu, falamos de um mundo muito maior que o nosso, um mundo em que 50km não são meia hora mas um ou dois dias; um mundo em que os produtos de primeira necessidade se confundem com produtos de luxo; um mundo que assentava numa micro economia e numa micro sociedade de dimensão local que só por ocasião das feiras conhecia produtos e gentes "de fora"...
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Neste mundo grande, quem o pudesse tornar mais pequeno revestia-se de grande importância como comprovam os vários privilégios de que os almocreves gozavam. Em muitos locais podiam comprar e transportar cereais (prática normalmente proibida aos particulares locais), e também era comum terem algum tipo de isenção em algumas portagens terrestres, abundantes na Idade Média. De entre as rotas de abastecimento mais importantes, destaque para as que levavam os almocreves a transportar peixe do litoral para o interior e, no sentido inverso, cereais, bem como o transporte de mercadorias agrícolas e artesanais na zona raiana.
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À importância económica junta-se o papel primordial que tinham enquanto elementos de ligação inter-comunitários, porque não eram só mercadorias que os almocreves levavam. Com eles iam também as noticias de freguesia para freguesia, do campo para a cidade, e da cidade para o campo. Quem ia casar com quem, quem comprou o quê, quem vendeu o quê, quem é o novo pároco de sítio tal, se as colheitas para lá da serra prometem, se há perigo de guerra, etc etc...
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Durante muitos séculos os almocreves foram praticamente o único canal de comunicação, especialmente entre as comunidades das regiões mais inóspitas e isoladas das zonas serranas. Ao manterem a comunicação, os almocreves contribuíram também (aparte as rivalidades, não raras vezes seculares, entre algumas aldeias), para a formação e manutenção de elementos comuns de identidade, fundamentais para a formação de um sentimento de pertença a uma cultura e a uma nação que, não obstante as particularidades regionais, tinha na sua base elementos comuns.
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Embora a partir do séc. XIX o estatuto do almocreve começasse a decrescer, era no geral uma profissão respeitada e considerada, pois além das noticias e das mercadorias, os almocreves trilharam rotas e ao longo dos caminhos por eles trilhados nasciam estalagens, albergarias, e outros negócios familiares de apoio ao viajante, sendo os almocreves uma importante parte da clientela...
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Mas regra geral, a vida de almocreve era perigosa, especialmente nas zonas altas, onde o frio e as tempestades, podiam fazê-los perderem-se, além do perigo constante dos assaltos por parte de bandidos que infestavam os caminhos, sem esquecer os lobos e, em tempos mais remotos, os ursos. Fiquemos com o testemunho que Carlos de Oliveira Silvestre, no seu livro "Crónicas da Serra" (de Montemuro), nos dá sobre a seu contacto, em meados do séc. XX, com aquele que foi decerto um dos últimos almocreves:
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" Quantas vezes foram surpreendidos na serra pelo cair da noite, no meio de terríveis tempestades de chuva e neve, com o ribombar dos trovões a fazerem alternância ao uivar dos lobos. Na escuridão, que só os relâmpagos quebravam aqui e além, era impossível seguir o invisível carreiro que os devia conduzir a porto seguro [...] Lembro-me de, num certo dia de terrível tempestade, ter batido à porta da nossa humilde casa um almocreve de Penude com o burrito carregado de milho. As fortes pancadas que bateu na porta traduziam bem o desespero que lhe ia na alma. Depois de acolhido com a solicitude e carinho que nos era possível, o homem, de lágrimas nos olhos, contou a sua triste viagem. Perdera-se na serra e caminhara à sorte, sem saber para onde. Quando viu a luz da nossa candeia através da janela, quase não quis acreditar que estava salvo."
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