Mulheres de Armas
Diferentes entre iguais nas Forças Armadas
* Marta Martins Silva
O espelho foi testemunha da satisfação. Tinha 16 anos, o irmão acabava de regressar a casa no primeiro fim-de-semana depois de ter começado a tropa, mas era a ela que o verde azeitona da farda assentava melhor. Ela assim achava, o reflexo da imagem a querer acompanhar o pensamento. Já ele, contrariado pela obrigação, não se importaria nada que a irmã lhe tomasse o lugar, embora nessa altura mulheres e serviço militar não fossem peças do mesmo dominó.
A tristeza de não poder cumprir o sonho de infância levou Ana Pombeiro de Jesus a emigrar para a Suíça, alguns anos depois de ter experimentado pela primeira vez a roupa do irmão. A hoje 1.º Sargento regressou com 23 anos, quando a notícia há tanto esperada veio pelo telefone: as mulheres iam finalmente poder prestar provas de admissão. Foi aí que a menina que sonhava com os tanques de guerra voltou a acreditar que os sonhos se existem é para serem cumpridos.
Já Mónica Pereira Martins estava longe de imaginar, quando aos 17 anos teve que se decidir por uma carreira, que ia pertencer ao grupo das primeiras mulheres a entrarem para os cursos de licenciatura da Escola Naval. Mais do que isso: que as notas que foram compondo a sua carreira iam sempre tocar-se de pioneirismo. Curiosamente, passou os seus dias de menina a pensar em números e a imaginar-se no futuro como professora de Matemática, influência das tias com a mesma profissão. Depois de acabar o 12.º ano, a 1.º tenente Pereira Martins inscreveu-se na Academia da Força Aérea, na Escola Naval e na Universidade de Coimbra, no curso de Matemática Aplicada. Foi admitida nas três, preferiu a segunda. Mas os pais, com medo que Mónica se arrependesse da escolha e não se adaptasse à dura vida militar, pagaram a primeira propina na faculdade, para garantir o lugar. Ela disse que não, não era preciso. Não foi. Não chegou nunca a desenhar números no quadro preto. Em vez disso, fez da escolha profissão que não se imagina a abandonar. A equação tem resultado.
Foi a necessidade de procurar um rumo profissional que a preenchesse e lhe desse o que o trabalho em Gestão nunca conseguiu, que fez Maria João Oliveira fazer um círculo no anúncio de jornal que falava no recrutamento de mulheres para a Academia da Força Aérea e sublinhar a vontade de aventura e desconhecido. Arriscou, foi aceite. Estava-se em 1991, e a major Maria João tinha 26 anos, e no currículo a palavra mágica: solteira, uma das condições para entrar. O estado civil alterou-se por duas vezes, depois de entrar na academia: de solteira a casada e mais tarde divorciada. Mas ainda hoje agradece ter aberto o jornal no dia em que viu o anúncio: é mais feliz como militar do que como civil. Quem também o diz é a tenente-coronel Anabela Varela, que só lamentou ter deixado os saltos altos em favor das botas da tropa. “Foi o mais difícil de trocar, fiquei sem calcanhares no primeiro exercício e com as mãos calejadas só de puxar os cordões das botas”, assume a jurista de profissão. A criança que sonhava ser hospedeira de bordo percebeu em adulta que o sonho repetido de voar se fazia com as asas da Força Aérea mais do que com os aviões civis.
Mas, como Ana de Jesus, não pode concorrer logo à Academia por não serem admitidas mulheres quando terminou o liceu, o que lhe cortou as ‘asas’. Formou-se por isso em Direito e o mesmo anúncio de jornal que Maria João viu, abriu-lhe a porta para o sonho antigo que nunca tinha sequer verbalizado para si própria. Na Academia da Força Aérea passou a ser a Marcela, alcunha que partilhava com Maria João, que entrou no mesmo ano. Tem explicação: o primeiro licenciado que entrou para a Força Aérea tinha o mesmo nome, e a partir daí os licenciados não mais se escaparam da designação.
HOJE, MÓNICA É PILOTO NAVAL
Ana pertence à administração militar pára-quedista, Maria João é chefe de Secção Administrativa da Repartição de Auditoria Administrativa da Direcção de Finanças da Força Aérea, e Anabela é jurista. São mulheres nas Forças Armadas e dizem-se diferentes entre iguais. É esse o estandarte que defendem. Sem armas, mas com a convicção do treino militar que as formou. Quando a conversa se começa a escrever de discriminação, as reticências anunciam hesitação. Mas garantem que não, nunca se sentiram inferiorizadas pelos “camaradas” homens. Ana de Jesus vai mais longe e aponta o dedo às facilidades excessivas que são dadas ao sexo feminino na recruta. “Sou contra as percentagens, porque não acho que a nossa integração seja difícil, nós é que a tornamos difícil”, diz, enquanto acusa o desemprego de levar para a vida militar mulheres sem condições físicas para tal.
“Há facilidades para as militares femininas e os homens percebem isso, o que ajuda a criar o sentimento de injustiça”, explica a militar que participou em três missões de apoio à paz. A major Maria João também destaca a discriminação positiva, e refere a protecção e o paternalismo que sempre sentiu por parte dos camaradas masculinos. Nega que alguma vez tenham duvidado do seu valor militar.Já Mónica, não esquece que durante os primeiros tempos a grande dificuldade foi ao nível das infra-estruturas: não estavam preparadas para as mulheres.
“Era tudo feito a pensar nos homens, os próprios navios não estavam prontos para receber o sexo feminino”, avança a 1.ª Tenente Pereira Martins, hoje piloto da fragata Álvares Cabral, que sublinha a evolução que a área militar tem sofrido nos últimos anos.
A tenente, solteira e sem filhos, lembra, no entanto, que a Marinha se confronta com a maternidade, porque uma mulher grávida não pode embarcar. De uma ou outra forma, sentiram as quatro que nem sempre as portas se abrem com um empurrão, e que muitas vezes a dificuldade está na fechadura. Ana de Jesus sofreu isso na pele. Depois de concretizar o sonho maior que tinha, o de ser admitida, a 1.º sargento queria mais do que vestir a farda: queria ir para Infantaria, ser operacional, estar na linha da frente nos combates. “Na altura não era permitido às mulheres serem operacionais, por isso tive de me contentar com a parte administrativa”, conta.
“Lembro-me de, nessa altura, um superior meu me dizer: ‘Ainda vais ser a primeira mulher comando em Portugal’”. O tempo “errado” em que nasceu não deixou, mas o mesmo tempo transformou a mágoa em amor à camisola: “Hoje também gosto de administração militar”, explica Jesus – como é tratada na Escola de Pára-quedismo de Tancos, onde trabalha. Também Anabela lamenta a fechadura que aos 18 anos não foi possível abrir. Trancada a sete chaves. “Se pudesse ter ingressado logo, e não só aos 28 anos, hoje não era jurista: era piloto de aviões.”
Desilusões à parte, nenhuma das quatro mulheres das Forças Armadas imagina a vida longe dos camaradas, das fardas, das paradas. E também da aventura e do desafio constantes, que todas confessam ter sido o que as levou até à profissão que hoje exercem. Acumulam muitas histórias para contar, que as missões e o treino lhes escreveram nas páginas. Ana tem dificuldade em escolher uma.
Acaba, entre risos, por lembrar quando foi no primeiro contingente para o Kosovo, na mesma altura em que os refugiados estavam a regressar. Os militaes ficaram alojados em tendas de campanha individuais, no mato, mas muitas vezes acabavam por dormir nas viaturas. Ana procurava um camarada masculino e, quando chegou ao pé dele, o militar estava... nu.
“Oh Jesus, desculpa”, terá dito, mais incomodado com a situação do que ela. A 1.º sargento foi também, muitas vezes, ombro de saudades. “Eles aproveitavam para falar com as militares mulheres sobre as esposas e os filhos, dada a nossa sensibilidade especial”, conta. Diz também que moderavam a linguagem “de caserna” desde que as primeiras mulheres começaram a participar em missões, o que facilitava quando chegavam a casa junto das famílias e não tinham de repensar o vocabulário. Os olhos azuis de Anabela Costa Varela iluminam-se quando recorda o maior elogio que recebeu de um militar homem: “Esqueci-me de que és uma mulher.
” Uma mulher que dança nos tempos livres, tem uma filha de 20 anos, e que durante dois anos integrou o Comité Executivo das Mulheres nas Forças Armadas, como Deputy Chair. Mónica Pereira Martins sorri quando diz que os amigos acham “espectacular” ter uma amiga militar, e que é o orgulho da família que sempre a apoiou. A Inês e o Francisco, de 11 e 9 anos, já estão habituados a que a mãe, Maria João, seja militar e que influenciada pela organização e hierarquia da profissão que tem, lhes imponha mais regras que as mães dos amigos. Os sobrinhos de Ana de Jesus, com quem esta aproveita os tempos livres, também.
E nunca se escapam de ir na rua e ouvir: “Agora é que eu devia ser militar”.
ESTUDO MOSTRA EVOLUÇÃO POSITIVA
A socióloga Helena Carreiras, investigadora do CIES/ISCTE tem vindo a estudar o tema da integração feminina nas instituições militares. Carreiras participou no Colóquio ‘Igualdade de Oportunidades nas Forças Armadas’, que decorreu em Lisboa.
A a sua apresentação, a socióloga referiu que a situação das mulheres nas Forças Armadas das democracias ocidentais tem vindo a alterar-se significativamente nas últimas quatro décadas: muitas restrições foram eliminadas, com um mais fácil acesso das mulheres a um conjunto alargado de posições e funções. Portugal está, aliás, acima da média no que respeita à representação feminina nas Forças Armadas. No entanto, a socióloga diz que a integração militar feminina está longe de ser concretizada, pois as mulheres são ainda excluídas de áreas e funções ligadas ao combate e têm uma representação limitada em posições de poder.
APOIO DA FAMÍLIA
Mónica Pereira Martins, Ana de Jesus, Maria João Oliveira e Anabela Varela têm em comum o facto de terem sido incondicionalmente apoiadas pela família quando decidiram abraçar o sonho militar. Mesmo em relação aos amigos “civis” – como gostam de frisar – dizem não sentir qualquer tipo de diferença de relacionamento. Consideram que a conciliação entre a vida familiar e a carreira militar não é diferente de em qualquer outra profissão, e o mais difícil são mesmo as ausências em trabalho. Anabela e Maria João só sentiram isso no primeiro ano da Academia, em que a semana de treino intensivo as levava a casa só ao fim-de-semana, mas Mónica e Ana, ambas solteiras, têm de passar algumas temporadas fora.
A 1.º tenente quando está embarcada na fragata Álvares Cabral (já chegou a passar seis meses longe da família), a 1.º sargento quando participa em missões – como já aconteceu na Bósnia e no Kosovo, ambas de apoio à paz. As quatro defendem que quando “o treino é duro, o combate é fácil”, que aplicam à sua vivência enquanto “diferentes entre iguais”.
DADOS
- 16 por cento das mulheres colocadas nas Forças Armadas pertencem à Força Aérea,
- 13,5% ao Exército, e 6,6% à Marinha.14 por cento dos militares portugueses das Forças Armadas são mulheres (em 2007).
- Em 2006 a percentagem era de 12%, em 2005 de 10,3% e em 2000 a representação era de 6,6%.19 por cento das mulheres militares no Exército estão em funções de apoio, 14,3% em funções técnicas e apenas 7,9% são operacionais.
- Na Marinha apenas 2% são operacionais e na Força Aérea a percentagem é de 7%.1479 entre o ano 2000 e o de 2006, mais 1479 mulheres ingressaram nas Forças Armadas Portuguesas.
Comparando o ano de 1994 e o de 2006 a evolução é ainda mais notória:
- mais 3089 mulheres.
Fonte: Carreiras, Helena (2006) Gender and the Military. Women in the Armed Forces of Western Democracies, London and New York, Routledge. Relatórios anuais do CWINF (Committee on Women in the NATO Forces).
in Correio da Manhã, 2007.07.06
Foto - Mariline Alves
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