A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

domingo, setembro 30, 2007

Entrevista CM: Costa Andrade - Código é uma reforma para problemas de ontem


* António Ribeiro Ferreira / Eduardo Dâmaso
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Bruno Colaço

Costa Andrade, penalista, é muito crítico da reforma do Código de Processo Penal. Diz que é uma reforma de hoje para os problemas de ontem e para um texto de anteontem com normas sibilinas. Aponta as lacunas, contradições e diz que os prazos para a entrada em vigor tiveram aspectos alucinantes e anedóticos. Destaca a pouca protecção dada às pessoas face aos meios de devassa e não tem dúvidas em afirmar que não protege os segredos profissionais. Afastado da política activa, este ex-deputado do PSD afirma que hoje ninguém liga ao que os políticos fazem.

Correio da Manhã – Quais são os aspectos mais negativos e, porventura, os positivos nas reformas do Código Penal e do Código de Processo Penal, com destaque para este?

- Costa Andrade – Todas as reformas têm naturalmente aspectos positivos. E esta tem muitos. Abordou muitos problemas que se punham, em que havia dificuldades de interpretação. Veio naturalmente dar resposta a esses problemas. Muitas das soluções são positivas. Agora, dizer de uma reforma, que acaba de entrar em vigor, que tem aspectos positivos é um pouco irónico e é o pior do que se pode dizer de uma reforma. Uma reforma tem de ter aspectos positivos. O que uma reforma não deve ter é, no momento em que entra em vigor, lacunas, contradições, inconsistências visíveis, notórias. Toda a gente sabe que as leis não duram para a eternidade. É preciso ir mudando as leis. E seria natural que esta reforma, daqui a uns anos, fosse mostrando algumas debilidades, lacunas.

- Desta vez não foi preciso tanto tempo.

- Pois não. Uma reforma não pode ter, à partida, as limitações que esta tem e de ter recusado entrar nos problemas com maiores dificuldades técnicas.

- Por exemplo?

- Dou-lhe um exemplo flagrante. A forma como se tratou o magno problema das escutas telefónicas. A reforma deu resposta a dois problemas. Um foi substituir a palavra imediatamente, que estava no Código anterior, isto é, levar imediatamente ao juiz. Aqui a reforma esteve bem, porque havia dificuldades em levar as escutas imediatamente ao juiz.

- Agora são quinze dias.

- Sim, agora são quinze dias. Aqui esteve bem. A reforma resolveu o problema. Depois tentou resolver o problema, que até se identificava com uma personalidade ou outra, cujas conversações tinham escutadas e ele não era suspeito, nem sequer arguido.

- Está a referir-se ao processo Casa Pia.

- Obviamente. Quis-se resolver esse problema que se identificava com uma ou outra personalidade. Como? Foi-se ao Código alemão, tirou-se a fórmula que lá estava, debilitou-a, isto é, tirou aquilo que no Código alemão ainda dava alguma consistência e acabou por se fixar que só podem ser feitas intersecções telefónicas a uma pessoa que sirva de intermediário relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido.

- Essa fórmula não irá provocar muita confusão? Não é muito limitativa?

- Quando os alemães se confrontam com ela, e a fórmula alemã é muito mais rígida, e se lhes pergunta o que é que limita, eles respondem nada. Essa fórmula não nos diz nada. E porquê? Qualquer amigo do suspeito ou arguido lhe transmite mensagens e pode ser escuto. Este foi um problema que não foi resolvido. Bem como outros relacionados com as escutas que ocuparam bastante tempo os trabalhos preparatórios desta reforma.

- Quais?

- Olhe, por exemplo: em que medida se podem escutar ministros de confissões religiosas, médicos, advogados, jornalistas, isto é, todas as pessoas que são titulares legítimas de segredo.

- Este Código deixou-as de fora?

- O Código já tinha o defensor em processo penal. E isso foi o que ficou cá. O problema é que não é só o defensor. Hoje há segredos tão importantes como o do defensor. A confidencialidade entre um arguido e o seu defensor é importante. E a do arguido com o médico? E a do ministro da confissão religiosa? Repare que parentes e afins têm direito de chegar a tribunal e dizer que não depõem em desfavor dos seus familiares. Então estas pessoas também deviam estar protegidas das escutas.

- É contraditório?

- Claro. Porque esse direito de recusar depoimento contra o pai ou o marido é subvertido através das escutas telefónicas. Este problema, que terá sido discutido nos trabalhos preparatórios, desapareceu do Código.

- E hoje em dia há muitos meios para se vigiarem as pessoas.

- Repare que há uma questão que é discutida em todos os países. Estes meios de devassa, como as escutas e não só, são úteis. Mas deve estabelecer-se um limite inultrapassável.

- Uma fronteira?

- Uma fronteira que não se passa que é a fronteira da intimidade. Que muita coisa da vida privada passe para as escutas telefónicas, muito bem. Agora, há um limite inultrapassável. Na Alemanha, por exemplo, houve já em 2004 uma reforma do Tribunal Constitucional em que se falava já na necessidade de se estabelecer uma fronteira inultrapassável para todas as pessoas. A sociedade hoje precisa cada vez de mais meios de prova, mas tem de haver o tal limite, que é o da vida íntima, diferente de vida privada.

- O novo Código proíbe os jornalistas de divulgar escutas sem autorização dos próprios. Os defensores desta norma falam em proteger o bom nome das pessoas. Mas muitas escutas têm interesse público, até porque revelam casos de abuso de poder.

- O problema é o mesmo. Essa norma, como está, não faz sentido. Porque proibir dar notícia de escutas absolutamente irrelevantes do ponto de vista da intimidade, uma vez que já foram meios de prova no processo, não faz qualquer sentido. A protecção da intimidade já está definida. Está perfeitamente estabelecido que a liberdade de imprensa prevalece sobre a vida privada, mas não prevalece sobre a vida íntima. E a vida íntima é um núcleo muito reduzido. Diz respeito a doenças mais graves, à sexualidade e pouco mais do que isso. Isto é a vida íntima. Porque em relação à vida privada prevalece o interesse de informar.

- Neste caso concreto das escutas, que valor é que, na sua opinião, deve prevalecer? O da imprensa ou das pessoas escutadas?

- Há um certo tabu em relação ao tema escutas telefónicas. Curiosamente, o Código não se estendeu a outros meios que são muito mais gravosos, muito mais evasivos. Por exemplo, os agentes encobertos. Os agentes encobertos são muito piores do que as escutas telefónicas. Há que dizer isto. A pessoa que é escutado só diz aquilo que quer. Mas o agente encoberto puxa-nos aquilo que eles querem que nós digamos.

- São induzidas a dizer o que as polícias querem?

- Exactamente. São muito mais gravosos e não entraram para o Código de Processo Penal. É outra das lacunas graves. Esta reforma, nas condições em que foi feita, era para ser uma reforma para o médio prazo, que reflectisse o que há de novo na sociedade. Mas não. É uma reforma de reacção às dificuldades que o Código tinha face à realidade passada. É uma reforma de hoje, para os problemas de ontem e para um texto de anteontem.

- Esquece o presente e o futuro?

- Não só esquece como tem normas sibilinas. Quando se diz que o que vale para escutas telefónicas vale para os mais meios de transmissão telemática e para as gravações de conversas cara-a-cara. Ora estas gravações são muito mais enfáticas do que as escutas telefónicas.

- São mais perigosas para a intimidade?

- Claro. Uma pessoa fala com um amigo e metem-lhe um microfone debaixo da mesa do café.

- Também são relevantes as escutas ambientais.

- Exacto. E o Código diz que se aplica correspondentemente. Mas como é que se faz? Temos um universo de meios de devassa – escutas telefónicas, agentes encobertos, gravações ambientais, GPS, comunicação electrónica, etc, e o que é que se faz? Era preciso estudar tudo isto, ver a gravidade relativa e ajustar os pressupostos em função da gravidade.

- Da gravidade? Está a falar da prisão preventiva?

- Até aqui as escutas telefónicas estavam medidas, mais ou menos, pelo limiar da gravidade da prisão preventiva. Os tais três anos de pena. Agora elevou-se a gravidade da prisão preventiva para cinco anos. E as escutas telefónicas ficaram na mesma. Isto é, ficámos com um catálogo louco de crimes que podem dar origem a escutas telefónicas.

- E os outros meios de devassa?

- Isso é o que é mais perverso. Os outros meios de devassa, como os agentes encobertos, que já são utilizados em alguns casos...

- Como no caso da droga.

- Exactamente. E se um agente encoberto for usado para um crime punido com prisão até seis meses? Já há. A corrupção activa, por exemplo, é um crime punido até seis meses. É um crime pouco grave. Grave na corrupção é a passiva, receber dinheiro. E para estes casos admitem-se agentes encobertos. É toda esta falta de sistema que marca esta reforma.

- Não é clarificadora e mistura vários meios de devassa.

- Era preciso ter consciência disto tudo. Eu não sei se houve ou não consciência. Há casos em que se nota algum esforço. Mas veja o caso do artigo 187. Quando se fala nas escutas diz-se que é aplicado a qualquer meio técnico diferente do telefone, nomeadamente o correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardados em suporte digital.

- O que é que isso quer dizer?

- Isto já não é o domínio das telecomunicações. Isto são buscas. Há uma diferença radical entre intromissão nas telecomunicações, a que se destinam estes artigos, e o acesso a documentos que estão gravados em computadores e outros meios digitais. Está aqui uma confusão muito grande de conceitos. Não houve a compreensão global dos problemas. E era a altura de fazer isto. Repare. Quando se está a fazer uma escuta por um crime aparecem conversas sobre outros. Como é que se resolve isto? Há doutrina sobre a matéria, é verdade, mas porque é que não se estudou isto?

- Houve um pacto entre o PS e o PSD. Juristas estiveram a preparar esta reforma. Como é que explica que se tenha chegado a este resultado?

- Eu acho que quando se planta a ideia de Pacto de Justiça abre-se um horizonte de reforma penal e processual penal com um grau de profundidade e exigência diferente das normais reformas feitas até aqui. Até podem, se for preciso mudar a Constituição. É dizer que as questões de Justiça são questões de regime. Isto é: vamos subtrair estas questões e as respostas a estas questões da normal conflitualidade e da alternância democrática. Vamos dar soluções de fundo aos problemas, independentemente de quem está no poder.

- Tudo isso falhou?

- Este era, parece-me a mim, o sentido do pacto. Mas isto punha a tal exigência de profundidade. Mas este pacto foi extremamente contraditório. Porque veio logo dizer-se que se queria fazer as reformas em tanto tempo e pô-las em vigor em prazos drásticos e verdadeiramente alucinantes. E esta preocupação veio a ter reflexos nos aspectos anedóticos da entrada em vigor. Não é o mais grave mas é revelador de tudo isto.

- Esta reforma vai ser de curtíssimo prazo?

- Eu tenho passado a ideia de que nós vamos continuar a fazer jus à nossa especial aptidão de fazer leis. Não há nenhum País que faça leis com a velocidade e a facilidade como nós as fazemos em Portugal.

- O próprio Presidente da República ficou surpreendido com a polémica e o Governo veio logo dizer que estava aberto a fazer algumas correcções.

- O Presidente promulgou uma lei que tinha atrás de si um pacto, que foi das melhores coisas que aconteceu em Portugal nos últimos tempos, com uma ambição legítima de se fazerem reformas importantes na Justiça. Acontece que essa ideia foi frustrada. Quando o Presidente nota com alguns espanto que os operadores reagiram com a violência com que reagiram, com descontentamento, com frustração, é porque alguma coisa estava mal.

- Começou logo pela pressa da entrada em vigor?

- É inqualificável o modo como se pôs estas leis em vigor. Em quinze dias, s a seguir a férias...

- Foram publicadas a 29 de Agosto e entraram em vigor a 15 de Setembro.

- Exactamente. A um sábado, a seguir a férias e são dois diplomas com a importância do Código Penal e do Código de Processo Penal.

- Também fez várias críticas à lei das prioridades da política criminal.

- Escrevi em revistas científicas para que não sobrassem dúvidas e a verdade é que ainda não vi nada que contrariasse essas críticas. Fiz muitas e sobretudo essa, sobre as prioridades da política criminal. A crítica de uma lei que quer ser ela e o seu contrário. Isto é: esta lei vai estabelecer prioridades. Muito bem. Mas, ao mesmo tempo, diz que todo o crime tem o subsequente processo. Mesmo a pequena criminalidade. Mas se é assim o que é que vai acontecer? Vai acontecer que o Ministério Público ou viola o princípio da legalidade, mas não houve coragem de o assumir.

- O ministro da Justiça foi muito veemente na defesa do princípio da legalidade.

- Pois foi. Portanto, a cada crime corresponde um processo. Se é assim, as prioridades não vão funcionar. Todas as forças disponíveis vão estar ao serviço da pequena criminalidade porque é a que corre mais risco de prescrever.

- Também vai ser uma lei falhada?

- A política criminal é uma coisa muito ampla, muito densa, implica muitas dimensões, dos detidos, das vítimas, das prisões, mais ou menos, das alternativas, implica tudo isto. E como é que possível fazer uma lei de política criminal, entre aspas, que diz expressamente que a lei não vincula os juízes?

- Não vincula os juízes?

- Não. Ora os juízes são os protagonistas da política criminal. Quem faz a política criminal é o legislador, que diz o que quer punir e como é quer punir. A essência de uma política criminal é a socialização dos delinquentes, evitar que não voltem a cometer crimes. A lei não tem nada disto. É política criminal sem política criminal. Aquela lei, para fazer jus à essência, o nome é um roubo ao dicionário. Aquela lei devia chamar-se Lei das Prioridades do Ministério Público. A lei é só isto.

- Uma crítica recorrente é que a justiça é lenta. Agora, com este novo Código, os prazos foram todos reduzidos. Vai ser mesmo assim?

- Mas encurta mesmo. A lei diz que encurta. Os prazos agora não são indicativos. São coercivos. Mas como? O que é que acontece? O agente do Ministério Público que deixar ultrapassar os prazos deve comunicar ao seu superior. E o que é que o superior faz? Castiga o funcionário? Uma das grandes asneiras da reforma foi esta: é que agora há prazos e os prazos são para cumprir. Mas para cumprir como?

- A imagem que se passa para a opinião público é a de que os culpados dos atrasos são os agentes da Justiça.

- Vai acusar o magistrado que no seu tribunal, com os meios que tem, ou com os meios que não tem, não consegue cumprir os prazos? Mais a mais o Ministério Público é uma estrutura hierarquizada, unitária. Tudo o que a base faz a hierarquia é co-responsável. Se a base não cumprir prazos o que faz a hierarquia? O que é que pode fazer? Com que meios?

- Fica tudo nas mãos do procurador-geral da República?

- O procurador-geral da República pode desencadear o incidente da aceleração processual. Mas quando os processos entrados forem aos milhares como é que se pode desencadear esse mecanismo? Tem de ser uma medida excepcional. Porque quando tudo é prioritário nada é prioritário.

- Concorda que o Código não contempla uma certa especificidade do combate ao crime económico?

- Esse é precisamente um dos problemas.

- O grande crime económico ganha com este Código?

- Face à lei há uns que reagem de uma maneira, há outros que reagem de outra. Há sectores, que por vocação, estão mais do lado da liberdade do que da ordem. E houve uma certa euforia desse lado. Eu desconfio que essa euforia pode vir a revelar-se prematura. Estamos a criar uma justiça penal um pouco esquizofrénica. Formalmente segura toas as garantias, com uma grande solicitude para com os direitos, liberdades e garantias. Mas, ao mesmo tempo, a justiça vai funcionando de forma subterrânea. Sobretudo se continuar a alargar-se a tendência, que parece incontornável, para recorrer aos meios de prova ocultos, como as escutas.

- Não há uma tentativa de os reduzir?

- Não sei se isso vai acontecer. Repare: que adianta eu não depor contra o meu irmão, que adianta eu chegar ao tribunal e recusar falar por estar coberto pelo segredo profissional, que adianta o arguido dizer que não é obrigado a confessar se entretanto, através de escutas e de agentes encobertos, a pessoa já confessou, o segredo profissional já foi todo violado, a confidencialidade entre membros da mesma família já foi toda violada. Podemos estar a caminhar para uma situação em que temos todas as formais mas poucas ou quase nenhuma garantia material.

- Isso é grave

- Perturba-me um bocado porque acho que este domínio das investigações encobertas devia ter sido trabalhado nesta reforma. E não foi. E se as leis de segurança alargam ainda mais a sua utilização a situação torna-se mais complexa. E depois temos de saber em que medida e em que condições os dados descobertos através dessas vias são transferíveis para o processo criminal. Porque o processo criminal tradicional só arranca a partir da suspeita de que alguém cometeu um crime.

- Já não é assim?

- Isso hoje está completamente subvertido. Com estas formas de investigação a polícia chega ao crime antes de haver suspeita. E portanto o processo criminal já não é a resposta do sistema à suspeita mas é, pelo contrário, o sistema que cria e multiplica as suspeitas. E cria-as em termos ou em condições que já não dão defesa. O arguido tem direito ao silêncio. Mas quando chega ao tribunal já está farto de falar para o processo. É um processo kafkiano.

- Este Código transmite a ideia que o processo penal tem um começo mais democrático, porque o arguido tem logo acesso às suspeitas.

- Formalmente sim.

- Mas no caso da criminalidade económica, com arguidos com meios poderosos, com acesso a grandes advogados, com prazos encurtados, não fica a ideia que este Código está feito só para apanhar os pobrezinhos?

- Pode ficar essa impressão. Vamos ver em que medida ela se torna uma realidade. É evidente que um dos sinais que distingue as classes sociais é o ter. Uns têm mais do que outros. Mas há outros sinais. Os ricos têm mais privacidade do que os pobres. O crime do pobre é feito na rua. Mata e rouba na rua. A criminalidade do rico é imaterial. Pode matar milhões de pessoas mas nem sequer vê o sangue. A devassa em relação à criminalidade económica é muito mais difícil.

- Mesmo com os tais meios sofisticados?

- A criminalidade económica é uma espécie de santuário em que os meios tradicionais não entram. O rico comete o crime em esferas inacessíveis e com meios tecnológicos de protecção absolutamente invisíveis. Não deixam cheiro, não deixam rasto, não deixam nada. Isto dificulta extremamente a investigação.

- Mas este Código não vem dificultar ainda mais o combate à criminalidade económica?

- Face ao texto é isso que se diz. É uma possibilidade. E se for assim é um efeito perverso da reforma. Mas eu temo outro efeito perverso da reforma. É que as sociedades, as entidades e as organizações são um pouco darwinistas. Têm uma grande capacidade de evolução. E quando a lei condiciona as coisas, normalmente arranjam-se formas extra-legais de ultrapassar a situação.

- Quer dizer exactamente o quê?

- Por exemplo. Quando se diz que o inquérito é todo público, pelo menos a partir do momento em que uma investigação começa a ser dirigida contra uma pessoa, pode vir a criar-se uma fase pré-processual, uma fase incontrolada e incontrolável.

- Sem suspeitos, sem controlo judicial?

- Sim, com o argumento de que andam só a ver. É que as forças de investigação também têm meios que não deixam rasto. E o processo penal fica para aquilo que menos interessa. Não estou a dizer que vá acontecer nem estou honestamente a criticar ninguém.

- Mas pode vir a acontecer?

- As instituições, as sociedades, as organizações têm horror ao vazio. Repare que a forma mais bonita e inteligente de violar uma lei não é violá-la frontalmente. É violá-la dizendo que se está a cumprir. As chamadas técnicas de neutralização. E neste caso é que eu tenho medo.

- Este Código abre a porta a tudo isso?

- Eu prefiro um Código de Processo Penal com certos coeficientes de devassa e intromissão, mas controlável, do que um Código que aparentemente me dá todas as garantias, mas onde eu não reconheço o adversário, não sei de que lado vem e dou por mim condenado.

- Há mesmo esse perigo?

- Não tenha duvidas de uma coisa. Hoje a tendência é para o endurecimento da luta contra o crime. Se as leis esquecem isto, fecham a porta e estabelecem muitos entraves, bem, o sistema rebenta.

- Houve muitas críticas ao excesso de presos preventivos em Portugal. Este Código dá resposta a esse problema?

- Veio dar e bem que tomou essa preocupação. Há três ou quatro anos tínhamos um grande excesso de prisão preventiva. Hoje, felizmente, não temos. Tenho a impressão, todavia, que se foi pelo pior caminho. O grande caminho era não desistir de fazer da prisão preventiva uma prisão preventiva.

- E não era?

- Uma prisão preventiva é uma medida de coacção destinada exclusivamente a servir determinadas finalidades processuais. Perigo de fuga, destruição de provas, perturbação da ordem pública. Só haver prisão preventiva nestas situações, independentemente da gravidade do crime. Em Portugal ainda há a mentalidade – e aí a comunicação social tem uma grande responsabilidade – de que um suspeito de homicídio tem de ficar em prisão preventiva. É chocante ouvir essas notícias.

- Pensa-se que a prisão preventiva tem a ver com a gravidade do crime.

- Exacto. E não tem nada a ver com isso. Tem a ver com finalidades processuais.

- Agora só se aplica a crimes com penas superiores a cinco anos.

- Pois é. Mas os antigos três anos estavam bem. Até porque era o limiar das escutas telefónicas. Havia coerência. Só que esqueceram-se de tudo. E depois criam-se soluções que caem em cima do Código de forma verdadeiramente assombrosa. Como dizer que a corrupção é criminalidade organizada.

- Não tem nada a ver?

- Nada. Absolutamente nada. Pode ser. Como todos os outros tipos de crime. A corrupção é uma transacção entre um funcionário e outro. Normalmente nem é organizada. Porque muitas pessoas batem com a língua nos dentes. O Código diz mesmo que a corrupção é uma criminalidade altamente organizada. Deve ser por ser feita no 10 º andar.

- Como é que explica que isso apareça no Código?

- Precisamente porque são soluções anti-sistémicas um pouco estranhas. Isto foi introduzido aqui quando viram que a pena de corrupção não tinha sido elevada, porque não tiveram coragem. E então apareceu esta bela obra de arte. Num Código do século XXI, feito com estas condições, estas inconsistências, estas debilidades, não deviam acontecer. Ou pelo menos que se viessem a revelar daqui a quatro meses quando o Código começasse a funcionar. Agora um Código que arranca assim, não virgem de críticas, é um Código à partida comprometido no seu sucesso.

- É um Código falhado?

- Não diria falhado. Do grande ponto de vista teórico houve aqui uma oportunidade perdida. Andei pela política e colaborei em muitas leis penais e nunca contámos com a colaboração do maior partido da oposição. Não explorar este horizonte de pacto, não fazer um Código perfeito à medida das possibilidades do tempo foi uma oportunidade perdida.

- Um Código para vinte anos.

- Exactamente. Um Código que à partida aparece com estas limitações é como tivessem destapado uma panela a ferver. É negativo.

- Não acha que isso aconteceu porque o Código foi quase exclusivamente feito por políticos?

- As leis são sempre políticas.

- Mas a Universidade esteve fora.

- A Universidade esteve fora, houve apenas algumas consultas, mas em termos verdadeiramente absurdos, com pedidos de pareceres em poucos dias. Ora um parecer demora muito mais tempo. Era preciso reflectir mais, ouvir mais, até publicar o Código mas adiar a sua entrada em vigor e se fosse necessário prolongar esses prazos. No outro Código, em que estive envolvido, o prazo até entrar em vigor foi de seis meses que depois se prolongou por mais seis meses. Desta vez houve uma pressa injustificável.

- Não terá sido pelo facto do Código ter sido feito em cima de casos pontuais, de casos da conjuntura, de casos individualizados, de traumas?

- Esse é um defeito que nós temos em Portugal. É tipicamente português. Acontece sempre quando a realidade da vida nos confronto para casos em que a lei não nos dá uma resposta directa e óbvia. As leis dão sempre resposta. Mas em Portugal a primeira coisa que se faz é mudar a lei. Porque de todas as variáveis da Justiça, o meio mais maleável é a lei.

- Em Portugal governar é sinónimo de fazer leis?

- É extraordinário. Veja que a Alemanha andou mais de um século para rever o Código Penal e ainda não conseguiu. Nós fazemos uma reforma penal no espaço de um ano. Eu costumo citar Carlos Drummond de Andrade: “Quando o povo pede ferro e sapatos não lhe dêem leis. Os lírios não nascem nas leis”. É como se tivéssemos doentes a morrer nos hospitais e os políticos viessem descansar o povo com a mudança da lei de gestão hospitalar.

- Não acha que um Código que reduz prazos e aumenta as nulidades não comporta um sinal de tolerância face ao crime?

- Comporta isso e do meu ponto de vista comporta uma pouca disponibilidade para projectar as consequências. Por exemplo: dizer que um processo pode ser público ou reservado depende de uma decisão irrecorrível do juiz de instrução pode ser um factor de grandes disfunções. De grandes perturbações. E sintoma de uma mudança de paradigma. Até aqui havia uma fase em que o Ministério Público era dono do processo e o juiz de instrução era apenas vigilante das liberdades. Agora não. É o juiz que vai dizer se é melhor para a investigação ser público ou reservado, O juiz não tem nada a ver com isso.

- Gera confusões na investigação e nas garantias dos arguidos?

- Há outro perigo perverso de haver estratégias apócrifas e subterrâneas. É sempre um perigo que espreita. É o próprio sistema acusatório que é posto em causa. É o judicial que vai dizer como se faz a investigação. E quem é que diz ao arguido que material de prova já existe contra ele? Não se sabe.

- Não teme uma reacção fortíssima dos agentes judiciais a esta reforma?

- A sociedade respondeu com irritação, sobretudo as pessoas ligadas à justiça. Menos um sector. Foi nítido que os defensores não reagiram assim. Veremos por quanto tempo e em que medida não há aqui um presente dos gregos como aquele que Ulisses deu aos troianos. Ainda é muito cedo. Eu estou muito preocupado, mesmo do lado das liberdades e garantias. Porque as ameaças às liberdades e garantias não vêm dos interrogatórios policiais. Mas vem de tudo o que é oculto, as gravações, as conversas ocultas que em Portugal se estão a multiplicar a um ritmo impressionante.

- E aí não houve intervenção.

- Não vi vontade nenhuma de intervir aí. De proteger os segredos profissionais, de membros da mesma família, Este Código não protege os segredos profissionais. E parece que terá havido consciência disso. Tudo está em saber se mudam algumas aparências mas, a coberto da ideia de que já demos tanto, isto pode ficar na mesma. Onde as defesas naufragam é nas escutas, nas intromissões informáticas, em tudo o que apanham nos computadores. Eu dava as garantias em troca de me protegerem neste aspecto.

- Não há limites?

- Não vi vontade nenhuma de pôr limites a este 1984 que se adivinha. E não estamos a falar de terrorismo nem nada disso. Estamos a falar de crimes com penas superiores a três anos. Crimes que nem sequer dão prisão preventiva. Mas isto é muito pior do que a prisão preventiva. É por isso que eu não deitaria muitos foguetes pela liberdade. Diria como o Hemingway, também os sinos dobram pela liberdade. Ou podem vir a dobrar.

- Entretanto não se esqueceram de proibir a publicação de escutas. Não se esqueceram dos jornalistas.

- Pois não. Eu não digo isto para ser simpático com os jornalistas. Mas o jornalismo em Portugal, em geral, respeita a intimidade. É diferente do inglês. E agora que proíbem a publicação das escutas vêm dizer que afinal podem publicar algumas. Ora isto não é o que está escrito no Código. Nãos e podem publicar nenhumas.

- Em sua opinião os jornalistas podem publicá-las?

- O jornalista confrontado com a escuta num processo, das duas uma: ou as escutas contendem com a intimidade ou não. Se não contendem pode publicá-las. Se elas integraram o processo podem publicá-las. A liberdade de informação tem uma barreira intransponível: a intimidade. Se publicar uma conversa escabrosa comete um crime, mas não o que está escrito no artigo do Código de Processo Penal.

- Não seria melhor suspender este Código?

- O melhor teria sido não ter entrado em vigor. Suspender provocaria muitas perturbações. Não sei o que seria pior. Estamos um bocado naquela fase de uma desgraça arrasta outra desgraça, um abismo atrai outro abismo. Tenho medo é que a teimosia evita que se mude.

- O Presidente da República não pode ter um papel neste processo?

- Não sei qual é a posição do Presidente da República, mas é evidente que ele não pode fazer nada. Se houvesse um partido da oposição, de alternativa de poder, que contestasse isso, bem, poderia ser um caminho. Mas não contesta. O PSD teve a sorte, saiu-lhe a sorte grande, quando se opôs à entrada em vigor, o que permitiu dizer umas coisas. Mas o problema não é sobretudo esse.

- O PSD teve sorte. Mas não se livra da irritação dos agentes judiciais, como referiu.

- Sabe que os políticos que hoje temos esqueceram-se de uma coisa, Esqueceram-se que as condições se alteraram drasticamente nos últimos vinte anos, altura em que se fizeram as reformas penais. Há vinte anos a sociedade estava voltada para a política. Estava atenta ao fenómeno político. E todas as pessoas sabiam o que se passava na Assembleia da República. Hoje não. Os políticos ficaram surpreendidos porque a sociedade sabia o que eles estavam a fazer. Não sabia nada. A sociedade hoje preocupa-se com praias, desporto, vida económica e como fazer a vida. A politica já não é o espectáculo de outros tempos. Os políticos viram frustrado um certo narcisismo. Ninguém liga ao que fazem. Nem agora com o que se passa no PSD.

- Ainda é militante do PSD. Como viu estas eleições para a liderança?

- Formalmente ainda sou. Vi com desinteresse total. Os dias passaram como se aquilo não existisse. Imagine agora o que pensam as pessoas que não são militantes. Nem o espectáculo agarra as pessoas. Têm outros mais interessantes.

- Como é viu as polémicas na campanha do PSD?

- Foi muito perturbador. Não foi para isto que se fundou o PSD em 1974. Custa muito. É o sinal dos tempos. A política sofre hoje uma baixa de qualidade notória.

PERFIL

Manuel da Costa Andrade nasceu em Garção, Bragança, uma aldeia que foi refúgio dos judeus expulsos pela inquisição espanhola no século XV. Catedrático de Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Coimbra, foi deputado do PSD de 1975 e 1995. Participou na feitura da Constituição e nas revisões de 1982, 1989 e 1992. Foi um dos autores do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987. Fora da política, é membro do Conselho Superior da Magistratura por indicação do Presidente da República.

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in Correio da Manhã 2007.09.30

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